O cartunista Jaguar, que lança livros em debate hoje, em SP, fala sobre os rumos do humor brasileiro e o legado deixado pelo "Pasquim" à imprensa
"Humoristas estão muito certinhos"
Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
| O cartunista e humorista Jaguar, que lança coleção de humor pela editora carioca Desiderata, numa pose de Humphrey Bogart |
O cartum está morrendo, o "Pasquim" não
foi assim tão influente e o mundo anda ficando sem graça. Apesar de fazer diagnósticos tão alarmistas, o humorista Jaguar não se diz um nostálgico. "Nostalgia é coisa de velho gagá", diz. O humorista avalia que a vida do "Pasquim" poderia ter sido mais curta, pois o jornal foi
perdendo influência e tiragem. "Devia ter ido cuidar
da minha vida, mas insisti de teimoso, de burro."
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL AO RIOAos 75 anos e ainda freqüentando de modo assíduo os botequins do Rio -e os da cidade
onde estiver-, Jaguar encontrou a Folha num tradicional
restaurante da rua São José, no
centro da cidade, na tarde da
última sexta-feira.
O motivo da entrevista é o fato de ele estar agora à frente da
coleção de humor da editora
carioca Desiderata, publicando
novos cartunistas e gente da
época do "Pasquim", incluindo
ele próprio. Entre os lançamentos vindouros, um livro de
cartuns que ele havia publicado
apenas na Argentina, há mais
de 30 anos, e do qual não lembrava mais. "Voltei para o Rio,
cai na gndaia, e esqueci dele."
O título, sugestivo, é "Nadie Es
Perfecto" (ninguém é perfeito).
Leia, abaixo, os principais
trechos da entrevista.
FOLHA - Como anda o cartum?
JAGUAR - O cartum é uma espécie em extinção. Tem muita
gente publicando história em
quadrinhos, charges, caricaturas. Não é a mesma coisa. Sou
cartunista, mas sobrevivo fingindo que sou chargista. Se não,
não pago as minhas contas.
FOLHA - Qual é a diferença essencial entre cartum e charge?
JAGUAR - Simples. Por exemplo. Hoje fiz uma charge sobre a
visita do Bush. Desenhei o Lula
chamando o Bush, que está indo embora do quadrinho. Só
aparecem os pezinhos dele. Lula estica o dedo e chama: "Ei, ô
companheiro, e a saideira?". Isso é uma charge. Uma piada
que, daqui a cinco anos, ninguém vai entender, porque é
em cima de uma circunstância.
FOLHA - E o cartum?
JAGUAR - É um troço que você
faz sobre assuntos que daqui a
20 anos qualquer um entenderá. Um exemplo clássico, uma
piada qualquer sobre o "Ricardão dentro do armário". Todo
mundo sabe do que eu estou falando. Piadas sobre vida conjugal, sexual, todo mundo entende. Em qualquer época. Já piadas em cima de fatos políticos
momentâneos vão ficando incompreensíveis.
FOLHA - E por que o cartum está
em extinção?
JAGUAR - Porque ninguém
mais publica. Eu não tenho onde publicar. De vez em quando
emplaco um cartum. Mas tem
de ser disfarçado de charge. Se
não for assim, não passa.
FOLHA - O mundo está se desinteressando do humor?
JAGUAR - Pelo menos deste formato de humor, sim. Tanto que
revistas no mundo todo estão
desaparecendo. A única que
ainda publica cartum de verdade é a "The New Yorker".
FOLHA - Há uma nostalgia excessiva com relação ao "Pasquim"? As
pessoas romantizam demais essa
época?
JAGUAR - Eu não tenho nostalgia nenhuma. Só quero saber o
que vou fazer amanhã. Mas as
pessoas ficam com esse papo:
"Ah, no tempo do "Pasquim'". É
uma bobagem, coisa de velho
gagá. Como se tivesse sentido
existir o "Pasquim" até hoje.
FOLHA - Quando lê os jornais, vê a
influência do "Pasquim"?
JAGUAR - Os jornais mudaram
muito. Mas acho que mudariam de qualquer jeito. Se não
fosse por um lado, seria pelo
outro. As coisas já estavam em
transformação.
FOLHA - Mas você escreveu que,
com o "Pasquim", a imprensa tirou
o paletó e a gravata.
JAGUAR - É verdade, mas a mudança já estava acontecendo. O
"Pasquim" deu certo porque as
pessoas se identificaram. Por
outro lado, posso dizer que
quem começou essa transformação toda na imprensa brasileira fui eu, e por acidente.
FOLHA - Como assim?
JAGUAR - A gente tinha feito
uma entrevista com o Ibrahim
Sued. Fomos eu, o Tarso de
Castro e o Sérgio Cabral. Mas
depois todo mundo sumiu.
FOLHA - Sumiu?
JAGUAR - Sim, sumiu. Éramos
um bando de porra-louca. Os
dois foram para a farra e eu tive
de tirar a entrevista sozinho. Só
que eu não sou jornalista e não
sabia fazer isso. E deixei o texto
com o jeito coloquial mesmo.
Virou nosso "estilo".
FOLHA - E pegou na hora?
JAGUAR - Não. Demorou. Os
jornais resistiram a adotar o
tom coloquial. Só depois que a
publicidade começou a usá-lo é
que a imprensa foi atrás. Mas
hoje já acho que essa fórmula se
esgotou.
FOLHA - Por quê?
JAGUAR - Nossas entrevistas ficavam boas porque éramos um
monte de caras de porre que íamos falar com um coitado de
um entrevistado que não tinha
chance de abrir a boca. Passava
um aperto danado.
Depois que a coisa pegou, a
imprensa começou a usar essa
fórmula, só que para levantar a
bola do entrevistado. Aí perdeu
a graça.
FOLHA - Até quando, então, você
acha que o "Pasquim" justificou a
sua existência?
JAGUAR - O "Pasquim" foi uma
experiência muito divertida,
mas eu poderia tê-la diminuído
em dez anos. Fiquei fazendo o
jornal de teimoso. Me endividei. Foi um horror. Todos pularam fora e eu fiquei. O jornal
perdeu a influência, a tiragem
era pífia. Podia ter feito como
os outros, que foram cuidar de
suas vidas. Mas, não, fiquei lá,
morando na redação, dormindo num colchonete debaixo da
prancheta. Um maluco.
FOLHA - Dá para viver de cartum?
JAGUAR - Não. Eu trabalhei 17
anos no Banco do Brasil. E nunca faltei nem um dia. O banco
foi fundamental. Não só pela
grana, mas porque me ensinou
a ser profissional. Sou um porra-louca, bêbado, alcoólatra,
um monte de coisa. Mas nunca
faltei no trabalho. Também
nunca deixei de entregar um
desenho no horário, no dia certo. Isso eu devo ao banco.
FOLHA - Houve um retrocesso no
humor brasileiro com relação aos
anos da ditadura?
JAGUAR - Sim. Essa coisa de não
poder chamar crioulo de crioulo, por exemplo. Fui casado dez
anos com uma crioula. Não é
pejorativo. Não vou começar a
dizer que casei com uma afro-descendente. É uma hipocrisia.
Mas a maioria dos humoristas hoje é muito certinha.
Criou-se um limite e, se a gente
passa um pouco, leva pito. Eu
não levo mais porque sou velho
e sou o Jaguar. Aí as pessoas dizem: "Ah, é o Jaguar, deixa ele".
Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 13 de março de 2007
Marcadores: entrevistas