MARCUS LOPES
Em março de 1999, o escritor colombiano Gabriel García Márquez
(1927-2014) surpreendeu o público em um evento na Casa da América, em
Madri, ao substituir um discurso tradicional pela leitura de um conto
que havia escrito recentemente. Ao lado do também Nobel de Literatura
José Saramago, Márquez apresentou aquele que se tornou, 25 anos depois, o
primeiro capítulo do seu romance inédito e póstumo “Em agosto nos
vemos”, cujo lançamento mundial é nesta semana.
O livro não tem o
mesmo refinamento dos grandes títulos do autor, como “Cem anos de
solidão” (1967) e “Amor nos tempos do cólera” (1985), por alguns motivos
práticos.
O principal deles é que, apesar de ter trabalhado com
afinco durante quase dois anos, entre 2003 e 2004, Márquez já sofria e
lutava contra o declínio das suas faculdades mentais. Isso resultou em
uma batalha interna entre o rigor dos seus escritos e a realidade
imposta pelas limitações da saúde.
A lenta e constante evolução
da doença degenerativa era uma situação frustrante e desesperadora. “A
memória é, ao mesmo tempo, minha matéria-prima e minha ferramenta. Sem
ela, não existe nada”, disse Márquez em determinada ocasião em seus
últimos anos de vida produtiva.
Todos os elementos do estilo do
autor estão ali: a capacidade de imaginação que o tornou um dos
expoentes do realismo mágico; a linguagem poética e o mergulho nos
sentimentos humanos mais profundos, sempre embalados em uma narrativa
direta e cativante.
O enredo narra a história de Ana Magdalena
Bach, de 46 anos, uma bela mulher, integrante de uma família com
tradição musical. Ainda muito jovem, abandonou a faculdade de artes e
letras para casar-se com um músico que, anos depois, se torna diretor de
um conservatório, substituindo o pai de Ana.
O casal tem dois
filhos. O menino seguiu a carreira do pai e tornou-se o primeiro
violoncelo da Orquestra Sinfônica Nacional, aos 22 anos. A filha
administra o confronto interno entre a rebeldia e os exageros juvenis
com uma suposta vocação para ingressar na Ordem Religiosa das Carmelitas
Descalças.
Todos os anos, Ana Magdalena viaja por quatro horas
em um barco de linha até uma ilha do Caribe, única referência geográfica
em todo o texto. O objetivo é visitar o túmulo da mãe, enterrada no
pobre cemitério do vilarejo da ilha que, aos poucos, teve a sua
simplicidade e autenticidade tragada pela ascensão do turismo na região.
A viagem, sempre em agosto, segue um ritual: bate-volta de uma
noite, embarque no mesmo táxi velho que a transporta até o hotel onde se
hospeda todos os anos; um ramo de gladíolos comprados na florista do
mercado local e a limpeza metódica do túmulo. Até o cardápio do jantar
se repete — sanduíche de presunto e queijo no pão torrado e uma xícara
de café com leite.
A rotina só é quebrada em determinada noite,
quando se dá a liberdade de tomar um drinque de gim no restaurante do
hotel enquanto aguarda o lanche. “O mundo mudou depois do primeiro
gole”, escreve o autor, ao contar o flerte entre Ana e um homem
desconhecido, naquilo que rapidamente e sem muitas perguntas se
transforma em um romance fugaz de uma noite. “Subiu para o quarto com o
terror delicioso que não sentia desde sua noite de núpcias.”
O
encanto é desfeito quando encontra uma nota de US$ 20 que o amante deixa
pela manhã no meio de um livro que ela estava lendo. A simbologia
daquela cédula deixada sem qualquer explicação é uma tortura mental que a
persegue ao longo de toda a narrativa.
A frustração com aquilo
que poderia ser interpretado como um pagamento pela noite de prazer não
impede Ana de adquirir um novo ritual nas viagens à ilha: a procura por
um homem que a satisfaça por apenas uma noite. Algo que, já na
desconfortável viagem de barco, faz aflorar um sentimento que se
assemelha a uma revoada de borboletas alegres em seu peito. Até a
relação com o marido melhora.
A partir daí, em agosto as
borboletas começam a voar na mente dela, que aguarda a viagem com a
mesma ansiedade de uma criança que espera a tarde de domingo para ser
levada ao circo. Uma ansiedade que faz Ana perguntar a um tocador de
saxofone e mago ambulante que encontra por acaso onde estaria o homem da
sua vida. “Nem tão perto quanto você gostaria, nem tão longe quanto
você crê”, responde o mago, que remete o leitor ao cigano Melquíades, de
“Cem anos de solidão”.
Passados quase dez anos da morte do autor,
“Em agosto nos vemos” é um belo retorno de García Márquez às
prateleiras das novidades literárias. Trata-se de um afago aos órfãos do
vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1982.
A edição
brasileira do livro inclui quatro páginas fac-símiles de originais com
anotações do autor. Há também um texto em que o editor Cristóbal Pera
detalha o processo de criação, edição e revisão do livro, além das
dificuldades. Mesmo tendo concluído a obra, García Márquez já era traído
pelas imprecisões da memória que se esvaía aos poucos.
O editor
também teve de trabalhar com fragmentos de informações e cenas
distribuídas em duas versões originais, uma impressa com anotações à mão
feitas pelo escritor e outra digital, que foi guardada por Mónica
Alonso, secretária de Márquez. “Minha tarefa nesta edição foi a de um
restaurador diante da tela de um grande mestre”, escreve Pera.
VALOR