ESTHER SOLANO
►A cada 15 dias sento-me na fren-
te do computador e tento es-
crever uma coluna minima-
mente inteligente, digna da leitura de
vocês, ou ao menos que dialogue com
alguém que está do outro lado destas li-
nhas. Desde que os mortos da pande-
mia começaram, no entanto, a se acu-
mular, a se aglomerar, pois os cadáve-
res, estes sim, se aglomeram nos cemi-
térios, os doentes, estes sim, se aglo-
meram nas UTIs, acabo sempre senta-
da por uns minutos na frente da pági-
na em branco a pensar que nada digno,
relevante ou adequado pode ser escrito,
pois... São 500 mil mortos. O que pode
ser dito à beira do abismo? O que pode
ser dito diante desse número que sim-
boliza uma descida sem volta aos infer-
nos? Não há linguagem, não há palavra
que dê conta do horror. A lágrima é a
única linguagem possível. O grito é a
única linguagem possível. Bom, há uma
palavra, sim, uma: assassino. No exten-
so mundo dos adjetivos, dos pronomes,
dos substantivos, dos verbos, das con-
jugações, eu fico com assassino, o único
termo que materializa o que realmente
está a ocorrer no Brasil.
Há outra forma de linguagem tam-
bém possível, a luta. Nesta coluna, que-
ro agradecer, com o coração na mão,
com a alma na mão, com as entranhas,
quem foi às manifestações no sábado 29
de maio e lutou por todos nós. Quem foi
e representou aqueles que não puderam
estar lá, porque a pandemia nos envol-
ve com muros invisíveis. Obrigada, obri-
gada, obrigada pelo sacrifício, obrigada
porque hoje todos podemos ter um pou-
co mais de fé, graças a vocês.
Cada indivíduo luta como pode e co-
mo sabe. Não gosto da superioridade mo-
ral de quem se proclama de esquerda, de-
cidiu não ir às manifestações e aponta o
dedo no nariz de quem foi porque, “se vo-
cês criticam Bolsonaro, aglomerar é inco-
erente”. Meu amigo, aglomerar com a in-
tenção de negar a doença, de assassinar,
de debochar dos mortos, é uma coisa, se
juntar nas ruas, protegido, para lutar con-
tra o vírus e o fascismo é outra bem dife-
rente. É, aliás, o oposto, pois o vírus mata,
mas o monstro também. Não enxergo in-
coerência, enxergo atitude nobre e genero-
sa. Tampouco gosto da superioridade mo-
ral de quem foi às manifestações e aponta
o dedo no nariz de quem não foi sem res-
peitar os medos, as doenças ou as angús-
tias que não permitem estar nas ruas nes-
te momento. Meu outro amigo, nossa luta
também passa pela empatia, pela sensibi-
lidade, pela compressão da dor e das limi-
tações alheias. Devemos ter o cuidado de
entender que esta situação tatua sequelas
terríveis na pele e na psique de muitos de
nós. O inimigo é outro. O assassino é outro.
Quando Átila Iamarino falou em 1 mi-
lhão de mortos no Brasil, eu confesso,
quis negar, achei exagerado. Minha in-
capacidade psíquica e emocional de en-
xergar o tamanho desse horror me blo-
queou, para aceitar que isso seria re-
motamente possível. Eu rejeitei, inde-
feri, deneguei, não podia ser verdade.
Como eu, acho que muitos de vocês não
podiam dar conta da realidade que es-
tava se apresentando diante de nós. Não
podia ser verdade um volume tão brutal
de padecimento. Mas estamos em quase
500 mil mortos e não posso negar a bru-
talidade que define os nossos dias.
Na CPI da Covid-19, o diretor do
Butantan, Dimas Covas, declarou que o
País poderia ter tido 60 milhões de do-
ses até dezembro de 2020, que “o Brasil
poderia ter sido o primeiro do mundo
a iniciar a vacinação se não fossem es-
ses percalços, tanto contratuais quan-
to de regulamentação”. Igualmente de-
vido à ausência de negociações sérias
com a China, o Butantan deixou de en-
tregar, em maio, 7 milhões de vacinas a
mais. Milhões, milhões de vacinas nega-
das, vacinas impossíveis, não produzi-
das, não entregues. Quantas vidas assas-
sinadas entre esses milhões de vacinas
negadas? Mas, é isso, a gente vive num
país que considera justo o impeachment
de uma presidenta por umas exóticas
pedaladas fiscais, mas milhões de vaci-
nas negadas não parecem ser justifica-
tiva suficiente.
Obrigada a quem foi às ruas. Obrigada
a quem não foi porque cuidou da sua dor
e de seus limites. Um abraço apertado,
desde aqui, longe mais próximo, a quem
sofreu a dor insuportável da perda.
Precisamos de todos vocês, devemos
ficar juntos. Agora é o momento daquele
“ninguém solta a mão de ninguém”, nas
ruas, no confinamento, na sala do hos-
pital, onde for.
Assassino, assassino, assassino. A
única palavra possível. •
CARTA CAPITAL