FOTO CRISTIANO MARIZ
ELIO GASPARI
Todo golpe fracassado é ridículo e todo golpe vitorioso é heroico. O de Jair Bolsonaro
fracassou. Passados dois anos, o Brasil livrou-se das turbulências
militares chacoalhadas a partir do Palácio do Planalto. Isso não é pouca
coisa.
A Polícia Federal divulgou uma representação de 221 páginas, prendeu quatro pessoas, inclusive um general da reserva, e indiciou 37 cidadãos.
Bolsonaro encabeça a lista onde estão quatro ex-ministros, três dos
quais com altas patentes militares. A Justiça decidirá o que fazer com
cada um deles. Sabendo-se como o Judiciário baixou o pano da Operação Lava Jato, é melhor economizar expectativas.
Pode-se olhar de duas maneiras para o golpe de Bolsonaro. Primeiro,
por que fracassou. Depois, como ele tentou ficar de pé. Fracassou porque
pretendia cancelar o resultado das urnas e, até por isso, não teve o apoio de comandantes militares relevantes.
Na conta de um coronel palaciano, no dia 17 de dezembro de 2022, o
placar no Alto Comando do Exército era o seguinte: "Cinco [generais] não
querem, três querem muito e os outros [sete] zona de conforto. É isso.
Infelizmente".
Quando militares se metem na política e vivandeiras civis se metem
nos quartéis, brilham os generais falantes (quase sempre da reserva).
Como os profissionais não falam, tornam-se invisíveis, mas decidem as
paradas.
O golpe de Bolsonaro tinha um núcleo golpista, essencialmente palaciano.
Seus generais e coronéis comandavam os motoristas de seus carros
oficiais. A eles juntaram-se milhares de vivandeiras acampados diante de
quartéis.
Em julho de 2022, quando Bolsonaro levantava o fantasma de uma
possível fraude na eleição de outubro, o comandante do Exército, general
Freire Gomes, disse, numa reunião, que não tinha notícias de
irregularidades. Dois dias depois do segundo turno, ao ser consultado sobre a minuta de um golpe subsequente à decretação do estado de defesa, ele condenou a ideia.
Nas semanas seguintes, Bolsonaro acreditou que suas vivandeiras
atropelariam os oficiais que pretendiam respeitar o resultado das urnas.
Enganou-se.
No dia 6 de dezembro, o caminhoneiro Lucão, acampado na frente de um
quartel, escreveu ao general Mário Fernandes: "O povo aqui em São Paulo
começou a desistir já, cara. Já tem barraca sendo desmontada. Né? As
pessoas têm trabalho, têm convívio social, o pessoal não tá mais
aguentando não, cara. 35 dias nas ruas. Eu mesmo tô desmotivado (...)
Esses três últimos dias tomando chuva direto lá, cara, voltando pra
casa, porra. (....) Sapato encharcado, roupa encharcada".
O general Fernandes foi preso na quarta-feira e precisa de bons advogados. Ele estava na reserva do Exército e na ativa como palaciano. Era o secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência e foi um ativo articulador do golpe.
Frequentava o acampamento de Brasília
e, uma semana depois do segundo turno, imprimiu no palácio o plano
"Punhal Verde-Amarelo", um manual para o levante. Previa a possibilidade
de atentados contra Lula e Geraldo Alckmin, seu vice. Isso e mais um ataque ao ministro Alexandre de Moraes.
Todo golpe fracassado é ridículo
Cinco dias depois da impressão do "Punhal Verde-Amarelo", o major Rafael Martins, que servia no Batalhão de Operações Especiais, trocou mensagens com o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro.
Discutiram os recursos necessários para tocar o bonde e concluíram que seriam necessários R$ 100 mil.
Não se sabe se algum dinheiro apareceu, nem de onde veio, mas no dia 7
de dezembro, o major comprou um iPhone 12, pagou R$ 2.500 (em espécie) e
colocou o aparelho em nome da mulher. Era um modelo caro. Seria usado
para iludir a vigilância.
Nesses dias, Lula e o ministro Alexandre de Moraes eram campanados.
No dia 9, uma equipe de seis militares começou a chegar a Brasília.
Usavam codinomes e se comunicavam por celulares.
Primeiro veio a Áustria (major Rodrigo Azevedo, preso na semana
passada). Na noite de 12, a sede da Polícia Federal foi atacada.
Visitando um acampamento, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, garantiu: "O Bolsonaro não vai decepcionar ninguém".
Às 20h do dia 15, o major Rafael, Austrália, Gana, Japão e Alemanha
estavam a postos, no caminho de Alexandre de Moraes, para a Operação
Copa 2022. Às 20h59 receberam ordens para abortar a ação. Como mostrou o
repórter Ranier Bragon, não se sabe quem acionou a missão nem quem a abortou. Essa é uma das lacunas do relatório apresentado pela Polícia Federal.
É possível que as 800 páginas que acompanham os 37 indiciamentos
esclareçam as dúvidas. Queriam envenenar Lula? Quem, como? As 221
páginas do relatório da Policia Federal mostram uma investigação
minuciosa, mas à parte, a denúncia da intenção dos atentados e a
profundidade do envolvimento do general da reserva Mário Fernandes,
pouco acrescentam de substancial às conclusões da CPI Mista do Congresso e à parte já conhecida do acervo documental do ministro Alexandre de Moraes.
De prático, o plano "Punhal Verde-Amarelo" do general Mário Fernandes resultou na compra de um iPhone pelo major Rafael.
O golpe triunfou, veja como ficaria o Brasil
Os comandantes militares fecharam com a proposta de Bolsonaro, o
golpe prevaleceu e a eleição foi anulada. Documentos encontrados no HD
do general Fernandes informam:
No dia 16 de dezembro de 2022, foi criado o Gabinete Institucional de Gestão da Crise. Funciona no segundo andar do Planalto. É chefiado pelo general Augusto Heleno e coordenado pelo general Braga Netto. Abaixo deles estão Mário Fernandes, mais dois generais e 13 coronéis. Paisanos, só o assessor Filipe Martins, o jurista do golpe, e dois advogados.
Entre as suas missões, o Gabinete de Gestão da Crise estabeleceu "um
discurso único em todos os níveis nas atividades de comunicação social
para evitar interpretações e ilações que desinformam a população".
O Gabinete teve sua ação subsidiada por um roteiro preparado há tempo e sempre atualizado pelo coronel Hélio Ferreira Lima (preso na semana passada). Abriu-se um inquérito para investigar fraudes ocorridas na eleição anulada. (Algum dia haverá outra.) O ministro Alexandre de Moraes
e outros "elementos geradores de instabilidade no STF" foram
"neutralizados". Criou-se uma "força legalista" que expede "mandados de
prisão contra envolvidos em indícios de irregularidades no processo
eleitoral". As prisões foram "amplamente divulgadas".
Com suas quarteladas, desde 1831, o Brasil já viu de tudo, mas esse
seria o único golpe destinado a manter no poder uma patota de oficiais
palacianos.