O que nos faz humanos? Outros primatas usam pedras e paus como ferramentas. Pássaros fabricam suas casas e castores constroem verdadeiras estações Sé subaquáticas. Baleias, golfinhos e outros animais se comunicam através de sons.
Também não é a consciência o que nos diferencia de outras formas de vida. Basta olhar nos olhos de um vira-lata para saber que tem alguém ali dentro.
Certamente não alguém capaz de compor “Aquarela do Brasil”, mas sem dúvida “algo” que “sabe”, ou pelo menos “sente”, que existe. (A razão das três últimas aspas é o próprio mistério da consciência, essa instância inefável).
Para complicar ainda mais, estudos recentes da biologia revelam que as plantas e cogumelos de uma floresta trocam informações e substâncias numa gigantesca rede subterrânea de raízes e micélio (as “raízes” dos fungos).
Diante das novas descobertas, questiona-se se este murundu informacional, apelidado de Wood Wide Web, não se aproximaria de uma espécie de consciência florestal. (Não é papo de maluco beleza, juro. Leia “A Vida Secreta das Árvores”, de Petter Wohlleben, “Entangled life”, de Merlin Sheldrake ou assista ao documentário “Fantastic Fungi”).
Aristóteles afirmou que o homem é o único animal que ri. Também errou feio o Ari. Ratos de laboratório riem quando brincam (www.wnycstudios.org/podcasts/radiolab/articles/281615-rat-tickler). O riso é, entre eles, uma importante ferramenta de socialização, assim como é entre humanos.
O que faz de nós, então, humanos? Segundo a antropologia, é a capacidade de ritualizar a morte. Quando passamos a enterrar nossos semelhantes com conchas, flores, comidas e ferramentas, deixamos de ser só natureza e viramos também cultura.
Túmulos são o primeiro sinal desse teatro mental que nos permite compor músicas, colher cascalhos em meteoros e nos emocionar com um gol do Pelé.
Por esta razão, o antropólogo francês Edgar Morin sugere nos classificarmos não como Homo sapiens, mas como Homo sapiens demens. Somos uns macacos que não apenas “sabem” mas deliram, criam, creem.
No documentário “Cercados” (Globoplay), vi novamente as cenas dos mortos por Covid, em Manaus, sendo enterrados por escavadeiras. Sem velório, sem lápide, muitos sem nem cruz ou estaca. Ali está o retrato mais perfeito da “ideologia” de Jair Messias Bolsonaro.
Com sua postura homicida, o “Mito” não só mata dezenas de milhares de brasileiros, como cancela o rito —essa veadagem do Homo sapiens demens, pensa o primata.
Tal gorila que repete o tempo inteiro “Deus acima de todos” é o ser mais incapaz de vislumbrar qualquer réstia do sagrado.
A sacralidade não tem, necessariamente, a ver com religião, mas com a compreensão da dimensão simbólica da existência e a sua valorização.
Por que a morte de uma pessoa me toca e a de uma mosca, não? Geneticamente, uma pessoa e aquele pontinho preto frito na grade de uma raquete elétrica são 60% idênticos. Sofremos com a morte de outro ser humano porque consideramos a vida humana sagrada. Bolsonaro, que do nariz pra dentro é um Saara, não diferencia gente de mosca.
Esta morte sem rito é o maior ritual do bolsonarismo. Encenação de um retorno a um mundo bruto, pré-simbólico, sem arte, sem ciência, sem fé, sem lei —ou melhor, só com a lei da selva.
Enquanto todos os países se organizam para vacinar contra a Covid-19, nosso presidente existencialmente lobotomizado derruba imposto sobre armas.
O trator empurrando a terra sobre as valas comuns é para onde sempre apontaram as arminhas de mão: a morte acima de tudo, o nada acima de todos.
FOLHA