– Dorrit Harazim
Ao contrário do lamento e da amargura, o
sentimento de raiva dá ao ser humano a sensação de ter algum poder, algum
comando sobre a vida que julga estar desgraçada, desolada e esquecida no mundo.
A raiva derrota o medo, diminui a solidão, compensa a desilusão com o alardeado
progresso humano. A raiva, sobretudo, faz votar. E Donald Trump elegeu-se
47º presidente dos Estados
Unidos em grande parte por apostar na raiva social, cultural e
econômica das dezenas de milhões de cidadãos americanos que, na semana passada,
o catapultaram de volta à Casa Branca.
Foi um triunfo brutal, acachapante, com
ganhos em todos os cantos do país e junto a quase todos os grupos demográficos.
Levou de arrasto a almejada maioria no Senado e deverá manter a maioria na
Câmara. Além da indispensável vitória no Colégio Eleitoral, Trump também deverá
conquistar o prêmio dos prêmios, aquele que nem sequer sua megalomania
considerava atingível: a cobiçada maioria no voto popular. Chamados a escolher
entre a candidatura da primeira mulher negra em 248 anos de História americana
e um ex-presidente fascistoide que fugiu da Casa Branca pela porta dos fundos
em 2021, o povo preferiu Trump. E pela segunda vez. De forma consciente,
irretorquível e ostentatória.
Da primeira, em 2016, a liderança democrata
se socorreu em explicações e racionalizações rasas — a bagagem política e a
personalidade de Hillary Clinton haviam pesado demais, enquanto seu topetudo
adversário republicano acenara com promessas meteóricas e uma realidade
alternativa. O surgimento de Trump era uma aberração episódica, uma aposta no
desconhecido de um eleitorado irresponsável, à Brexit.
Desta vez não houve voo cego. O eleitor
conhecia todas as obsessões, crimes, desvarios, improvisações, malignidades e
infidelidades morais ou sexuais do candidato. Ainda assim, optou por entregar o
país ao magnata condenado num processo criminal, indiciado noutros três, com
seis declarações de falência no currículo e dois impeachments durante o
primeiro mandato. A exposição máxima da vulgaridade de Trump, de sua
irresponsabilidade misturada a nacionalismo xenófobo, misoginia e mendacidade
não afugentou o eleitor. Ao contrário, foram recebidos como manifestação de
franqueza crua. A grande maioria dos eleitores de Trump se sentiu ouvida e
representada no revanchismo escancarado do candidato.
Trump conseguiu afastar a política americana
dos partidos, trocou o processo pela performance e fundiu tudo num só movimento
popular. Sua adversária, Kamala Harris, não teve chance. Elencada de última
hora para substituir um octogenário Joe Biden agarrado ao poder, teve apenas
107dias para desviar o país da rota trumpista. Foi triturada pelo adágio da era
Nixon lembrado na autópsia do day after:
— Um vigarista sempre derrota um incauto.
Foi Trump quem conseguiu arregimentar uma
improvável coalizão de diferentes que vão da área rural aos excluídos sociais.
— Os americanos não querem ser governados por
gente que se formou em Columbia ou Yale. Todo mundo “das quebradas” está com
Trump porque ele é o melhor gângster que vimos até hoje — diz Patrick
Bet-David, popularíssimo podcaster e empresário de mídia digital com Q.G. na
Flórida.
Em festas patrocinadas por ele, circulam
rappers, ex-mafiosos, competidores de UFC, youtubers — recorte
perfeito da nova classe política emergente do trumpismo.
Trump deve a vitória à frustração da maioria
com o sistema, as instituições, a falsa meritocracia — o mesmo sistema e
instituições que ele deverá comandar a partir de janeiro. Governará dentro ou à
margem das normas democráticas? Na semana passada, em entrevista à Foreign
Affairs, o historiador Stephen Kotkin, autor de uma biografia de Stálin em três
volumes, repetiu o que diz há anos — Trump é tão americano como torta de maçã:
— Talento para o espetáculo, espírito de
bucaneiro, instinto para o tudo ou nada são alguns dos traços que fizeram os
Estados Unidos. Trump não é um alienígena que pousou de algum outro planeta.
Não é alguém implantado no poder pelos serviços de operações da Rússia. É
alguém que espelha algo profundo e duradouro da cultura americana. Basta ver as
palavras que ele habita e o projetam: luta livre profissional, reality show,
cassinos e jogos de azar, cultura das celebridades, redes sociais.
Kotkin não acredita que a retórica
francamente antidemocrática do ex e futuro presidente desembocará em fascismo:
— Não há dúvida de que Trump tem inúmeros
desejos. Também não há dúvida de que ele gostaria de exercer o mesmo tipo de
controle sobre o sistema político de que dispõem Xi Jinping na China ou Putin
na Rússia. Ele até já disse isso. Mas é preciso considerar o sistema como um
todo, o conjunto das instituições, não apenas as fantasias de uma só pessoa.
Acontece que já são duas as pessoas com
fantasias assustadoras e convergentes — os dois homens mais poderosos do mundo.
Um foi eleito, o outro não. Juntos, Donald Trump e Elon Musk podem
querer brincar de donos do Universo.
GLOBO
ILUSTRAÇÃO: MARCELO