"Um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar", diz um velho ditado
que se repete em boa parte do mundo. A convicção por trás disso é que
uma situação improvável e desastrosa não se dará novamente no mesmo
contexto e para as mesmas pessoas. O pior ficou para trás.
Quando, em 2016, Trump
ganhou a eleição americana, foi um "valhei-me, Deus!" geral para a
esquerda e o centro liberais no mundo inteiro. Mesmo pesquisadores
americanos da comunicação e da ciência política se entreolhavam
perplexos ante o inverno que acabava de chegar.
Na noite do domingo em que Bolsonaro
ganhou a eleição no Brasil, em 2018, me ocupei de consolar amigos que,
apesar de todo o conhecimento profissional sobre política e democracia,
eram jovens e ainda não tinham experimentado o sabor amargo de viver sob
um governo autoritário no Brasil.
Constatado o inevitável —isto é, que a maioria dos eleitores havia
topado dar um cheque em branco a um maluco de extrema direita para
evitar que o PT voltasse ao governo—, tudo era só desalento.
A esquerda se consolou com a ideia de que ninguém largaria a mão de
ninguém. Os que taparam o nariz e votaram em Bolsonaro apaziguaram a
consciência repetindo que as instituições acabariam domando o bruto ou
que toda aquela virulência antidemocrática era só da boca para fora.
Estavam todos errados: todo mundo largou a mão de todo mundo, já que
a esquerda não se une sequer por interesses. E Bolsonaro dobrou a
aposta na brutalidade verbal e na barbaridade institucional e levou o
seu voraz apetite pelo poder a todo custo até o limite quase trágico do 8
de Janeiro.
Quando, enfim, a lucidez prevaleceu novamente, todos respiraram
aliviados. Foi trágico, foi por pouco, deixou um estrago imenso e uma
ferida aberta, mas quem sabe a sociedade aprende com os seus erros.
Erramos, aprendemos, melhoramos —acreditava-se.
Talvez não seja bem assim. A volta de Trump nos Estados Unidos
parece muito plausível se depender apenas dos eleitores. E por aqui o
bolsonarismo demonstra ter volume parlamentar, tração eleitoral e força
no debate público inclusive para sobreviver politicamente a Bolsonaro.
Talvez Trumps, Bolsonaros e tantos outros mundo afora não tenham
sido frutos do acaso ou resultado de uma conjunção astral rara, singular
e que dificilmente se repetirá.
A vitória de Milei na Argentina
deveria fazer-nos considerar que talvez a principal novidade política
do século 21 seja realmente a força eleitoral de candidatos radicais, de
fora do sistema, extravagantes, com retórica ferozmente antipolítica e
antiesquerda, politicamente incorretos e agressivos.
Acrescentaria a esta lista alguns elementos que retiro de um post de
Fabio Wajngarten, um dos estrategistas do bolsonarismo: "Vence quem
fala o que a grande massa popular quer ouvir; vence quem é autêntico,
quem tem paixão, quem vai para cima".
Diria, além disso, que vence quem cria e motiva os insatisfeitos, os
zangados, os que não sairiam de casa para ir às urnas se não
acreditassem que estão indo mudar tudo.
Não é mero populismo. Pelo menos se populismo ainda quer dizer
antielitismo e uma forma de vínculo entre o líder carismático e a massa a
ele vinculada organicamente.
Pois isso explica mais o peronismo derrotado que o mileísmo
vencedor. A nova extrema direita criou uma nova "base da sociedade",
autêntica e oprimida, claro, e uma nova elite —"a casta"—,
frequentemente invertendo a dicotomia de classe da tradição da esquerda.
Milei é o raio que cai de novo sobre a cabeça da esquerda e do
centro políticos. Talvez não seja propriamente um raio, mas represente
uma inovação política que está se normalizando.
Massa, claro, era o Lula/Haddad de 2018, o adversário ideal para ser batido, não o Lula de 2022, a única "kriptonita" no caminho da nova força.
Mas se nem o registro recente do pesadelo dos americanos e
brasileiros foi capaz de evitar que os argentinos —tão cultos, tão
politizados— também dessem um cheque em branco ao seu próprio maluco,
quem sabe não estejamos diante de uma nova normalidade política? De um
fenômeno de que ouviremos falar com frequência cada vez maior e em mais
lugares?
E se o precário e singular não forem as vitórias desestabilizadoras e
perturbadoras de pessoas como Milei, Bolsonaro e Trump, mas frentes
amplas democráticas que, eventualmente, se juntam para enfrentá-los?
E se a política baseada em radicalização, crises, ódio tribal,
retóricas extremas e desprezo ao convencional, à mediação e à moderação
for o novo modelo vencedor de disputas eleitorais? Pensem nisso.
FOLHA
ILUSTRAÇÃO ARIEL SEVERINO