Em 2012 Jaguar escreveu uma crônica no jornal O Dia, lembrando de MADAME SATÃ.
Jaguar: 36 anos sem madame Satã
Rio - Quando você para de estalo de beber, começa a procurar coisas
para preencher os dias que de repente ficam in-ter-mi-ná-veis. Por
exemplo, desencavar envelopes bolorentos estufados de antigos recortes.
Num deles encontrei, num Pasquim de 1986 (!), uma crônica que escrevi:
“10 anos sem Madame Satã”. Foi meu vizinho da porta ao lado: morávamos
num ‘balança, mas não cai’ na Rua
Taylor, com mais de 200 minúsculos (in)cômodos: quartinhos onde só
cabiam cama, cabideiro, pia, fogareiro, privada e chuveiro.
Tinha muito cigano; se esfaqueavam e tentavam arrombar minha porta. Eu
botava uns quatro cadeados. Quando voltava, pelos menos dois tinham sido
arrombados. Satã, então, foi meu melhor amigo; todas as noites era o
mesmo programa: bordejo pelos botecos e cabarés da Lapa ou perto.
Gostava de um que ficava num segundo andar, perto da Mesbla. Grande
bailarino, dançava sozinho, o pessoal abria a roda só para ele. Uma
entidade negra girando no salão, Maurice Bejart ficaria de queixo caído.
A noitada (que os bobões hoje chamam de balada) geralmente terminava no
Capela, onde ele tinha dado a célebre pancada que matou o sambista
Geraldo Pereira.
Às vezes eu, de porre, não me tocava e lhe
passava o menu. Levava sempre a mesma bronca, naquela voz de taquara
rachada (que Lázaro Ramos esqueceu quando fez o filme sobre Satã, apesar
de me consultar antes): “Jaguar, você sabe que sou analfabeto”. Depois,
o garçom tinha que ouvir as exigências do mestre de forno e fogão, o
bife voltava à cozinha até ser aprovado, o arroz tinha que ter molho de
tomate “porque arroz branco é comida de doente”. Foi no Capela que
assisti a um papo de Satã com um famoso criminalista. O assunto foi
direito carcerário, e Satã deu show de conhecimento.
Pudera, meu
amigo tinha passado 25 anos em cana, principalmente na Ilha Grande, onde
virou atração turística. Não tinha saco para ficar relembrando as
façanhas legendárias, as fugas, os entreveros com a Polícia Especial, a
briga histórica com Mário Vianna (que foi da PE); quebraram, em duas
horas de pancadaria, um cabaré da Mem de Sá. Amarrava a navalha aberta
num barbante e girava como uma espada de samurai, enfrentava uma
guarnição da Rádio Patrulha. Merecia um monumento na Lapa. Mas só foi
homenageado em São Paulo, onde nunca esteve: o bar Madame Satã (os novos
donos tiraram seu nome, ficou só Madame) onde, por ironia do destino,
só toca rock paulista.
As Grandes Entrevistas do Pasquim