Milly Lacombe
Começa com esse verso a canção “Wish you were here” (“Gostaria que
você estivesse aqui”), do Pink Floyd: So you think you can tell heaven
from hell?
Você é capaz de distinguir céu azul de dor? Um sorriso de um véu?
Fizeram você trocar seus heróis por fantasmas? Fumaça por árvore? Ar
quente por uma brisa?
Esses versos estão na música composta na metade dos anos 70. A letra
fala da falta de capacidade de perceber a realidade ao nosso redor e
aponta para as trocas que somos encorajados a fazer na vida. Fala de
entorpecimento, de fuga, de quebras, de rompimento.
Pensei nela assistindo ao dilacerante “Zona de Interesse”, que conta a
história da família do diretor geral de Auschwitz e de sua casa ao lado
do campo de concentração: jardins, piscina, muitos empregados, luxo,
fartura. Ao fundo, as chaminés queimam com vidas humanas e ninguém se
importa. A existência segue com as crianças correndo na grama, vinho
gelado sendo servido ao ar livre num fim de tarde. Gritos e gemidos de
morte são escutados ao fundo. Não importam. Não são pessoas que estão
morrendo, são coisas, gente abaixo da humanidade.
Quando o filme terminou eu estava catatônica.
Escrevi sobre ele nesse texto aqui (“Fomos Cúmplices”), mas ainda sem
conseguir alcançar o que sentia. Finalmente, escutando Pink Floyd,
entendi: nós somos a família alemã ao lado do campo de concentração.
Somos as pessoas que não se importam com os assassinatos na Baixada
Santista. Que naturalizam discursos abjetos como o do governador de São
Paulo explicando com frieza tétrica por que essas operações policiais
são necessárias, construído a ideia do inimigo que precisa ser
eliminado, o outro absoluto, abaixo da humanidade.
Somos as pessoas que assistem ao Jornal Nacional produzido no dia em
que 112 palestinos famintos foram assassinados enquanto esperavam que a
esmola humanitária fosse arremessada sobre suas cabeças e não têm
impulso de quebrar o aparelho de TV de tanta raiva testemunhando a
naturalização do horror através daquelas vozes tão familiares, que falam
de modo tão manso, quase doce.
Como noticiar com pompa e verniz, conferindo espaço para a
naturalização do horror, aquilo que só poderia ser devidamente
comunicado com o fígado e com lágrimas. Tivemos uma aula.
Não nos perguntamos como exatamente tanques, armas e bombas conseguem
entrar por terra mas a esmola humanitária precisa ser jogada do céu
criando ainda mais angústias, medos, aflições e terror entre os que
esperam a comida cair sobre suas testas.
Existe entre os médicos-heróis que seguem trabalhando em Gaza uma
nova nomenclatura para alguns pacientes: WCNSF. Quer dizer Criança
Ferida Sem Família Sobrevivente (Wounded Child No Surviving Family).
A Tv não mostra, não fala, não revela.
Pessoas morreram durante a confusão por comida, é o que nos dizem com suas vozes sérias mas ainda bastante amenas.
Vai começar a novela? Tá demorado esse Jornal Nacional de hoje, nossa. Ah, acabou. Ufa.
A fúria com que se tenta fabricar consenso, como coloca o linguista
Noam Chomsky, é comovente. O que mais se produz no norte global é
plástico e consenso. Arremessam sobre nossas cabeças as histórias que
precisam vingar para que sigamos sem conseguir distinguir céu de
inferno. Aceitamos. A vida é corrida. Trabalho. Pagar boletos. Tentar
resistir.
Seria o caso de começarmos a falar de fake news de forma mais alargada.
O que acontece nas favelas e periferias do Brasil exatamente? Por que
a polícia tem o direito de entrar atirando? Por que aceitamos tão
passivamente que pessoas sejam assim exterminadas? Não nos enojamos que a
televisão fale na cara dura do direito de ir e vir de manifestantes de
inclinações nazifascistas mas não ligue que jovens negros não possam
circular livremente pelos bairros ricos desse país à noite? Não nos
importamos que mulheres não possam circular livremente pela cidade, pelo
transporte público, em suas casas, sem correr o risco de serem
abusadas? A TV se importa com o direito de ir e vir dos manifestantes
indo para a Paulista defender a tortura e com nada mais. Deixem os
fascistas circularem em paz!
Não somos capazes de olhar para o passado e tirar dele o exato
momento em que precisamos nos levantar e berrar? Nos achamos assim tão
diferentes dos oficiais nazistas, dos sul-africanos brancos do
Apartheid, dos senhores e das sinhás de pessoas escravizadas, das
mulheres dos oficiais nazistas que seguiam servindo o jantar em louça
chinesa enquanto ali ao lado judeus eram queimados vivos? Dos
colonizadores que invadiram as Américas e aniquilaram culturas e
civilizações?
Será que conseguimos distinguir um nazi-fascista de um político de
dentes muito brancos e terno de corte fino que fala mansamente as piores
coisas? Uma manifestação que bajula tortura e torturador de atos
democráticos?
Qual é o exato momento do levante? Quando diremos basta? Em que
momento a água de nossa humanidade finalmente ferverá? Quando
entenderemos que se alguns de nós já estão no inferno então todos
estamos?
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UOL