Safatle subestima a luta das conquistas frágeis
Celso Rocha de Barros
Em entrevista à Folha, o filósofo Vladimir Safatle afirmou que "a esquerda política morreu como esquerda" e que "a extrema direita é hoje a única força política real no país". Enquanto a extrema direita manteria sua "capacidade de ruptura", a esquerda teria perdido sua capacidade de propor "igualdade dentro dos processos de produção e alguma forma de democracia direta".
A esquerda brasileira, obviamente, não morreu. Neste exato momento, Fernando Haddad briga para tornar a tributação brasileira mais progressiva, e acaba de propor no G20 a taxação global dos super-ricos. Marina Silva certamente está entre as autoridades mundiais com melhor atuação contra o desmatamento e o aquecimento global. Há retrocessos conservadores em nomeações que ignoram a representatividade, e inúmeras áreas em que as resistências conservadoras impedem maiores progressos. Mas o terceiro governo Lula tem indicado mais, não menos, disposição para enfrentar brigas difíceis do que os governos petistas anteriores. Até porque não sobraram brigas fáceis.
E Safatle não parece dar o valor devido à luta necessária para que a democracia, ou as políticas sociais, resistam. Não há nenhum mecanismo automático, sistêmico, que lhes garanta a sobrevivência. Se não houver uma sindicalista, um militante negro, um ambientalista ali embaixo brigando com todas as suas forças, pragmaticamente, todo dia, sem parar, tudo isso cai. Nessa luta, os reformistas enfrentam muito mais poder do que a extrema direita quando propõe sua "ruptura".
A distinção é importante, inclusive, para evitar a sedução que a extrema direita exerce sobre setores pouco esclarecidos da extrema esquerda: aquela vontadezinha de migrar do comunismo para o fascismo, pulando a social-democracia, pela sedução da coreografia da ruptura, mesmo quando encenada a favor de todo mundo que já tinha poder e dinheiro no começo da briga. É só olhar para a turma da esquerda brasileira fascinada com Vladimir Putin.
Mas Safatle está falando de um problema real: há uma assimetria de "direito ao radicalismo" entre esquerda e direita no Brasil atual. Enquanto a esquerda administra uma frente ampla, a direita "moderada" vai à Paulista aprender entusiasmo com os fascistas. Em um quadro de consolidação do sistema partidário com forte viés conservador, o risco de diluição ideológica para a esquerda é real.
Entretanto, não acho que Safatle tenha boas respostas para o problema. Por exemplo, ele recusa a ideia de "gerir a crise do capitalismo". Bom, é o que tem para gerir hoje. Não há um modelo de socialismo minimamente pronto para ser implementado sem alto risco de repetir o autoritarismo das experiências socialistas anteriores. E a crise do capitalismo pode ser administrada como New Deal ou como fascismo.
No fundo, minha discordância fundamental com Safatle parece ser esta: quando olho para a esquerda brasileira atual, não vejo tanta acomodação a um sistema. Vejo mais uma luta terrível, diária, para preservar e atualizar conquistas de décadas que quase desapareceram faz muito pouco tempo. Até agora, está dando surpreendentemente certo.
Por fim, acho honesto reconhecer que se menos de 2% dos eleitores
tivesse votado diferente no segundo turno de 2022 toda a minha aposta na
democracia teria dado errado.
FOLHA