Em novembro do ano passado, filmamos na ilha de Paquetá, onde por acaso moro, o meu primeiro longa-metragem como diretor, “Noites de alface”, baseado no livro da incrível Vanessa Barbara. Ao longo de quatro semanas, tivemos, portanto, aquele adorável e e louco disco voador do cinema pousado aqui.
Orçamento justo, locações perto, mas sempre aquela história de leva refletor pra lá, busca o ator ali, atrasa o almoço meia-hora, antecipa o lanche, monta a tenda, desmonta, etc etc etc. No início da pré-produção, sugeri que tivéssemos pelo menos um carrinho elétrico (atualmente, em Paquetá temos carrinhos elétricos em substituição às antigas charretes) e sugeri que a produção conversasse com o Mauro, (condutor, ex-charreteiro, “nascido e criado” na ilha), que além do transporte, poderia nos ajudar com seu conhecimento do bairro e das pessoas. Não deu outra, Mauro, apelidado pela equipe de Maurão, estreou no cinema.
A filmagem transcorreu sem qualquer grande incidente, contando com a hospitalidade da população que quem conhece esse pedaço de chão no meio da Baía da Guanabara sabe como é. Faltando alguns dias para o fim da filmagem, o Mauro já estava dominando os tempos e espaços do set, e eu lembro de comentar com alguém da equipe: “o Mauro vai sentir o fim desse filme”. Porque, quem faz, sabe, o vazio depois de um processo longo de filmagem é algo palpável, quanto mais em quem vivencia aquilo pela primeira vez. O processo de construção de uma obra naquela soma de tantos esforços, saberes e habilidades é um negócio único.
Não deu outra.
Poucos dias depois do último corta, uma parte pequena da equipe ainda terminava a desmontagem, precisei levar minha filha para a escola (ela estuda no Rio) e liguei pro Mauro.
“Mauro, tá livre?”
“Tá precisando? Pra que horas?”
Lá fomos nós.
A distância entre a minha casa e a estação das barcas é bem pequena. Mas foi o tempo de trocarmos um pequeno diálogo que levo comigo, nas lembranças fundamentais que essa profissão me legou:
“Pô, Zeca, acabou, né?”
“É, acabou, quer dizer , ainda tem um pessoal desproduzindo uma locação” (a essa altura, já falávamos na língua do cinema)
“É louco, né, Zeca? Forma como se fosse uma família e depois, de uma vez, acaba, vai todo mundo embora, cada um vai pra um canto.”
“Pois é, não é fácil não. Mas você ainda vai encontrar todo mundo de novo, quando a gente fizer a sessão de lançamento.”
“Lançamento? E eu tenho que ir, é?”
“Não é obrigado, claro, mas você vai perder a chance de ver o seu nome na tela do cinema?”
“Ué, vai ter o meu nome?”
“Claro, ué, você não trabalhou? Vai ter o nome de todo mundo que trabalhou no filme.”
Silêncio silêncio silêncio.
“Sabe, Zeca, depois desse filme, sou o primeiro a defender quando alguém vem dizer que isso que vocês fazem é coisa de vagabundo” (estávamos vivendo aquele clima de guerra pós eleição) “Porque, vou te contar, o pessoal rala nesse negócio. A gente ralou pra caramba, não é fácil não.” (uma observação aqui: no dia do nosso jantar de confraternização, o Mauro não foi porque, depois do set, precisava estar no seu plantão como vigia do hospital)
‘
Chegamos à estação, abri a carteira pra tirar o dinheiro mas ele não quis receber. Insisti, ele não aceitou, e me disse.
“Vou te falar uma coisa. Trabalhei até ontem, hoje peguei um passeio cedo e não ia mais trabalhar. Falei: hoje vou tirar a tarde pra tomar uma cerveja. Só vim porque era você.”
Nos despedimos ali, o Mauro com os seus indefectíveis óculos escuros. Debaixo daquela lente havia, naquele exato segundo. um pouco do antídoto que tanto procuramos.
Menos ódio, mais cultura.
Obrigado, cinema.