nelson hoineff
Lembro-me que foi numa segunda-feira de 1963. Naquela época, os filmes
entravam em cartaz às segundas-feiras e meus pais me levaram naquela
noite para o primeiro dia de exibição de um filme chamado Oito e Meio.
Foi no cinema Riviera, em Copacabana, que mais tarde se transformaria em
Cinema II, e anos depois morreria como a boate gay Le Boy.
Eu tinha
recém-concluído os estudos para o Bar Mitzva, e ainda no lobby do
cinema encontrei o rabino Henrique Lemle, da ARI. O Dr. Lemle, além de
me educar para a passagem à vida adulta, era um dos maiores sábios de
seu tempo. Eu ia apenas ver um filme cujo título era um numero, mas
aquele encontro era um pressago muito bom.
Não vou cansá-los
detalhando o que se passou na sequencia, mas eis o que aconteceu: eu
entrei no cinema como um garoto de 14 anos, e saí duas horas e meia
depois como um garoto completamente diferente. Passei a noite em claro,
tudo o que tinha visto revirando ante meus olhos. Não sabia muito bem do
que se tratava, mas era muito claro que aquelas imagens todas estavam
falando comigo. Muito mais do que qualquer outra imagem havia feito até
então. Estavamos os dois, aquelas imagens e eu, dialogando sozinhos,
longe daquele insensato mundo, com tanta intensidade, tanta verdade que,
seja lá o que estivesse acontecendo, eu acabara de descobrir o meu
lugar.
No dia seguinte, peguei um dinheirinho com minha mãe e
voltei ao Riviera para a primeira sessão da terça-feira. Foi o início de
um longo processo de descobertas. Lá atrás, entendi que o diálogo com
um filme não se resume em desvendar o início, meio e fim que ele contem;
nem em decorar sua ficha técnica. Entendi que o diálogo com um filme
pode ser (e normalmente é) mil vezes mais intenso, enriquecedor e
honesto que com qualquer ser humano. E que a natureza dinâmica deste
processo não tem fim. Até agora, devo ter revisto aquele filme com nome
de número umas 70 ou 80 vezes. E nunca ví o mesmo filme. Nem por uma
única vez. A cada vez ví um filme diferente. Não porque ele se
remontasse dentro das latas ou dos computadores – mas porque,
pacientemente, esperava que eu me remontasse, ampliando meu proprio
repertório para ser capaz de recebe-lo.
Sou indigno de servir de
referencia para quem quer que seja, mas gostaria de deixar claro para os
tres ou quatro que possam ter algum interesse nisso, que Oito e Meio
construiu, frame a frame, a natureza do que me transformei – se há algo
de minimamente digno no que me transformei. Se sou a criatura, Oito e
Meio é o criador, e receio que nem mesmo Fellini e Rota, que o criaram,
tenham mais alguma ingerência sobre isso. certamente para o desconsolo
de ambos..
Não sei a ordem em que acompanhei Fellini, embora eu me
lembre de, bem mais tarde, estar contando as horas para o lançamento de
Julieta dos Espíritos em outro cinema extinto da cidade, o Ricamar, hoje
Sala Baden Powell. O fato é que quase todos acrescentaram – e continuam
acrescentando – vetores essenciais na minha formação. O que eu quero,
insisto, não é falar sobre mim, que não mereço ou sequer almejo um
minuto da atenção de quem me lê, mas atestar (e atestar eu posso, ah
isso eu posso, ora se posso!) que o cinema pode às vezes burlar as
expectativas sobre a logica da formação dos seres humanos.
Em
reconhecimento ao que sei ser a contribuição de Fellini ao Nelson em que
me transformei, passei a festejar seu aniversário junto a muitos amigos
queridos. Faço isso há 45 anos e, como se vê, não interrompi nem com
sua morte, 25 nos atrás.
- Padre, eu não sou feliz
- E quem te disse que você veio ao mundo para ser feliz?
Todas as respostas estão alí. Puxe bem pela memória, amigo querido. Com
quantas pessoas você é capaz de conversar sobre a vida? Tenho tempo
para esperar.
Às vezes penso no que teria acontecido se naquela
segunda-feira de 1963 meus pais me tivessem levado para outro filme, ou
não tivessem me levado para cinema algum. Quem seriamos nós se nossos
pais nunca tivessem se encontrado?
Essa noite, Fellini faria 99
anos; e o que me parece incompreensível é o quanto ele ainda tem a me
ensinar. Nunca poderei ser grato o suficiente pelo que este cineasta já
fez por mim, nem entender adequadamente o Frankenstein que ele criou.
Este momento, enquanto arrumo os vinhos e queijos para meus convidados,
ouço Katyna Ranieri cantando Rota e é como se tudo desfilasse em um
minuto. Toda a minha vida alí está, como na roda final de Oito e Meio.
Sei que os jovens, ungidos pela imortalidade, não suspeitam, mas tudo
sim está na roda. Estão todos alí. A vida tem começo, meio e fim, ora se
tem.
Estão todos alí. Mudamos as posições e la nave va.