Terapia que o futebol brasileiro precisa fazer inclui ajustes de linguagem
Sérgio Rodrigues
No domingo escrevi na Ilustríssima, a propósito do aniversário do 7 a 1, que o futebol brasileiro precisa de terapia se quiser retomar o caminho virtuoso que transformou nossa seleção na mais vitoriosa da história.
Escrevi aquilo antes da eliminação na Copa América,
onde mais uma vez a equipe de amarelo apresentou um futebol ralo e
inseguro, com raros lampejos individuais e jogo coletivo pobre. Mas
ninguém precisa ser profeta para ver que o futuro não anda sorridente.
Se houver alguma verdade na tese de que recalcamos o 7 a 1, evitando o
necessário luto à base de piadinhas histéricas, a eventual superação da
fase braba vai exigir revolver traumas e reorganizar a linguagem que
construímos em torno do jogo.
Esta coluna tenta dar início ao processo com outra hipótese: a de que
o futebol brasileiro, cujo estilo já foi chamado mundo afora, com
intensa admiração, de jogo bonito ("beautiful game"), se transformou no
"jogo dos bonitos".
A origem da expressão jogo bonito é controversa. Há quem diga que o
primeiro a usá-la foi o genial Didi, meia do Botafogo e da seleção que
em 1958 conquistou a primeira Copa para o Brasil. De todo modo, nunca
pegou realmente por aqui. "Futebol arte" é um equivalente próximo, mas
não idêntico.
O comentarista inglês Stuart Hall também reivindicou a paternidade da
expressão, dizendo que a empregou ao analisar uma partida do Manchester
City no mesmo 1958. É possível que "jogo bonito" já estivesse em
circulação antes disso.
O que parece incontroverso é que o maior responsável por sua popularização foi Pelé,
numa autobiografia publicada em 1977 em inglês e que teve o jornalista
Robert L. Fish como ghost-writer — "My Life and the Beautiful Game"
(Minha Vida e o Jogo Bonito).
"O jogo bonito", com artigo definido, nasceu para designar o próprio
futebol, praticado por jogadores de qualquer nacionalidade. No entanto,
acabou associado principalmente ao estilo vistoso, ao mesmo tempo lúdico
e cheio de autoridade, da seleção pentacampeã do mundo.
Faz tempo que nosso jogo não anda lá muito bonito, como se sabe.
Acredito que não por coincidência, nesse mesmo período histórico nossos
jogadores, mais ricos do que Didi e Pelé jamais sonharam ser, se
tornaram pródigos em sinais de vaidade, ostentação e deslumbramento.
Um marco fundador do "jogo dos bonitos", consistente com o
diagnóstico de que o 7 a 1 foi um trauma mal-elaborado, data de 2018. O
ano do inacreditável penteado com que Neymar entrou em campo em nossa partida de estreia na Copa da Rússia, contra a Suíça, no dia 17 de junho.
Sem moralismo algum, aquele frondoso topete louro escovado talvez
fosse ridículo em qualquer campo de futebol, em qualquer época. No
momento em que a camisa mais pesada da história fazia sua reentrada numa
Copa depois da completa humilhação de 2014, era também um sintoma de
grave desconexão cognitiva e emocional.
Quem poderá dizer que tanta boniteza capilar não teve influência no
fato de que Neymar saiu daquela partida marcado para sempre, aos olhos
de grande parte do mundo, como um fanfarrão, um cai-cai desprezível? O
Brasil empatou em 1 a 1, com gol de Coutinho, mas nosso maior craque
teve ali seu 7 a 1 particular.
O jogo dos bonitos nunca mais foi embora. É algo que está na alma, na
mentalidade, pairando sobre questões técnicas, táticas e físicas. Esse
tipo de coisa muda lentamente, mas muda. Que não demore muito.
FOLHA