Política de vexame
Muniz Sodré
Ainda circula nas redes a cena em que Bolsonaro entrega a Milei sua medalha de "imorrível, imbrochável e incomível", com um dos filhos tentando traduzir os termos para o espanhol. Pode-se perguntar por que reportar uma baixaria dessas, quando a memória coletiva já está saturada dos episódios repugnantes a cargo de ambos. Mas o ato recente ocorre num quadro de estresse de variáveis essenciais da vida política, levado além do que seria normal chamar de zona crítica, e pelo visto peça de uma estratégia.
Antecedentes: Milei trocou a cúpula do Mercosul pelo festival em Camboriú, numa provocativa violação dos protocolos de Estado. Isso soa irrelevante na Argentina de hoje, onde se normalizou um hiato entre a atividade de uma camarilha de estrategistas políticos e a obsessão presidencial em transformar a economia num laboratório de ciência própria, supostamente para tirar o país da crise. Nada a ver com resgatar da miséria o povo, que nela mergulha cada vez mais, e sim assegurar a continuidade do sistema à hegemônica correlação de forças financeiras.
Nas crises, o ecossistema capitalista admite uma "fascioesfera", um buraco negro da moral, que oscila entre a violência e o grotesco. Daí o cambalacho de dar corda à alucinação protofascista de um presidente com boa ressonância popular, desde que fixado em seu real interesse: a experiência de uma economia neoliberal extremista, vigiada de perto pelo FMI. A principal estrategista política, além de um jovem conselheiro, é sua irmã, mediadora do diálogo com Conan, o cachorro já falecido. Os estrategistas econômicos fingem de cachorro morto.
O problema da armação publicitária é a fadiga do recurso, que transborda da zona crítica da política, inteligível no âmbito de relações diplomáticas, para ofensas pessoais a autoridades de países como Brasil, Bolívia, Colômbia e Espanha. Milei adora xingar. Mas a vinda ao Brasil, além de mostrar que existe uma política do vexame, sinalizou que a exportação da palhaçada já não obtém a repercussão esperada.
O que resta é o vazio da mobilização, pontuado por eventos
horripilantes como a entrega da medalha. O vídeo deixa evidente que o
argentino apenas fingiu entender o significado da inscrição. A pobreza
do espanhol falado teria levado um dos presentes a abaixar as calças e
gesticular com o dedo para traduzir "incomível". Uma variante do "golden shower".
Mas de nada importa qualquer entendimento racional, porque na
fascioesfera o grotesco escatológico afirma-se sozinho. Incompreensível
mesmo a olhos públicos é que governadores de estado acolham, pagando, a
patuscada, e que uma parcela da população vibre contente.
FOLHA