Escrever o artigo relembrando o clima pré-golpe em
Governador Valadares, onde eu morava, garoto com dez anos – http://tinyurl.com/mmnl8df - revolveram
memórias que me levam a também escrever a minha versão de “onde estavas no dia
1º de abril de 1964”.
O clima era bastante tenso na minha casa. Meus pais sabiam
que os militares estavam planejando um golpe (essa história vou contar em outro
texto). E meu pai na corda bamba pela qual se equilibrou grande parte de sua
vida: malvisto pela direita por seus trabalhos sociais com favelados, prostitutas
e camponeses; malvisto pela esquerda julgando que fosse um gringo infiltrado.
No momento, o temor em casa pendia mais para a reação da
direita. A Igreja Metodista de Valadares, que meu pai liderava, tinha - além da
forte atuação social que irritava os latifundiários – um grupo de jovens conscientizados
e militantes, apesar da casta de velhos fundamentalistas. Ali funcionava um
grupo de estudos que mais tarde evoluiria para uma célula, numa estranha
mistura de religião e marxismo (e que foi dizimada quando a tal reação veio
mesmo a partir de 68. Da minha turma quase todos foram presos, alguns
torturados, outros tiveram que sair – a história dessa geração).
Mas então minhas lembranças. Como narrei no artigo
anterior, as forças oligárquicas do Rio Doce não esperaram a senha do golpe e
detonaram sua própria revolução no dia 30 de março. No primeiro de abril eu
estava há dois dias trancado em casa. O pau quebrando na rua. Com as tropas
descendo de Minas o exército de Magalhães Pinto subitamente trocou de lado e
juntou-se às milícias & jagunços no emocionante afã de patrulhar ruas,
caçar subversivos e saquear estabelecimentos.
Ao final daquela tarde chegou a notícia de que o Exército
tinha fechado o ambulatório que a igreja administrava na favela da Bela Vista.
O boato é que tinham depredado o lugar. Meu pai foi lá saber. Me ofereci pra ir
junto, não por companhia ou heroísmo, mas porque tinha um namorinho de criança
com uma menina favelada de lá e estava preocupado em saber como ela estava. Tentei
agora mas não me lembro do nome dessa menina. Lembro do seu rosto e de suas
mãos, e que era triste. Muito triste.
Chegando no pé do morro tinha uma barreira militar e
pararam o nosso carro. Eu nunca tinha visto soldados uniformizados tão de perto
(a não ser em museus americanos). Mandaram a gente descer do carro e um oficial
se aproximou. Me lembro de ter achado ele tão novinho pra se portar com tanta
autoridade. E me lembro bem das palavras que ele disse, porque as achei
ridículas. Assim: “Em nome da Revolução e do Governo Militar estamos
confiscando o seu veículo para o serviço da Pátria”. Soldados entraram na nossa
Rural azul creme e branca e levaram ela embora.
Ficamos ali, meu pai e eu, numa rua vazia, ao lado de uma
barricada. Ele perguntou se iam dar algum documento pela tomada do carro, ou
como iriam devolver, e os soldados riram. Começamos a andar a pé para casa.
Quando achamos um armazém meu pai pediu para telefonar e ligou para alguem vir
nos buscar. Nisso já estava de noite.
Uns dois dias depois tivemos notícias da Rural Willys. Estava
sendo usada pelo Exército como camburão (não sei se esta palavra existia na
época) para recolher suspeitos. Acontece que o carro tinha nas portas os
brasões da Igreja Metodista. Meus pais ficaram preocupadíssimos do povo achar
que a Metodista tinha aderido à Revolução e prestava serviços aos milicos.
Ele foi então se encontrar com o poderoso Coronel Altino, a
quem conhecia, e explicou que não ficava bem um carro de uma associação
religiosa estar sendo usado pelo Exército, ainda mais naquela função, que
precisava do carro para transportar mantimentos, etc e tal. O Coronel disse que nada poderia fazer, pois
– meu pai contava que ele disse – “vivemos tempos excepcionais”. Mas no dia seguinte um grupo de soldados
estacionou o carro em frente à nossa casa de número 1456 acompanhado de um
pedido de desculpas.
Eu adorava essa Rural. Foi nela que minha família fez uma expedição do interior
da Mata Atlântica, no Espírito Santo, até Brasília só pra conhecer a cidade
quando foi inaugurada. Gostava de viajar aninhado na parte de tras, entre as
malas, ouvindo o ronco do motor e as conversas dos pais. Viagens curtas, para
as fazendas próximas de Jerusalém e Galiléia, viagens longas indo passar férias
na praia. Quando entrei na parte de trás novamente eu vi as manchas de sangue.
Tentaram lavar, mesmo assim apareciam. O golpe de 1964 pra mim foi isso.
Durante o tempo em que tivemos esse carro, nunca mais saiu dali o sangue.