O cruzado que Trump escolheu para a Defesa
Dorrit Harazim
Aos 44 anos, o veterano Pete Hegseth mantém o corpanzil sarado dos tempos em que foi soldado de elite do Exército americano. Prestou serviços no Iraque, no Afeganistão e na abominável prisão militar de Guantánamo antes de se tornar personalidade cultuada da Fox News. Ali ancorava um dos programas de maior audiência e estridência do canal, até ser pinçado por Donald Trump para ocupar o cargo de futuro secretário da Defesa.
Em condições mínimas de razoabilidade, a indicação de Hegseth teria poucas chances até de chegar ao Senado, ainda menos de ser aprovada na sabatina — os legisladores democratas, somados a alguns republicanos pensantes, pareciam decididos a impedir tamanha insânia. Antes, porém, era preciso abortar outra indicação de Trump: a do agora ex-deputado federal Matt Gaetz como procurador-geral. A pressão contra Gaetz funcionou. Detestado por seus pares e retratado como predador sexual contumaz em relatório da Comissão de Ética da Câmara, ele desistiu do cargo antes de precisar ser sabatinado.
À primeira vista, uma derrota indigesta para o triunfal vencedor da eleição de 5 de novembro. Mas só à primeira vista. É possível que Trump tenha usado Gaetz como isca calculada. Os republicanos dificilmente correrão o risco de implodir também, de forma tão frontal e acelerada, mais um candidato do firmamento Make America Great Again (Maga). Trump não perdoaria a infiel reincidência, e da ira vingativa do futuro presidente muitos no Senado já provaram.
ara explicar quem é e o que significaria Hegseth chegar ao comando do Departamento de Defesa, vale começar pelas tatuagens que traz no corpo. Cobrindo boa parte do tórax direito, está a Cruz de Jerusalém (também conhecida como Cruz das Cruzadas). Apesar de datar da Idade Média, ela voltou a ser cultuada por extremistas de direita e protofascistas. Na cerimônia de posse do democrata Joe Biden em 2021, Hegseth chegou a ser excluído da equipe que fazia proteção presidencial por causa dessa tatuagem. Explica-se: duas semanas antes, no fatídico 6 de Janeiro, supremacistas e trumpistas inconformados haviam tentado impedir pela força a diplomação de Biden no Capitólio.
— Este momento de nossa história clama por uma Cruzada Americana — escreve Hegseth num de seus livros mais perturbadores.
Tem mais. Na parte interna do braço esquerdo, a tatuagem de uma sinuosa serpente evoca a libertação americana da Inglaterra; no antebraço, uma frase em latim: Deus Vult (Deus o quer), apropriada das Cruzadas por neonazistas como grito de guerra contra a disseminação do islamismo. Uma bandeira dos Estados Unidos, uma imensa cruz com espada e dizeres em hebraico, um “We the People”, do preambulo da Constituição americana, em letras gigantes, também fazem parte do ideário gravado no corpo de Hegseth. Seus disparates verbais também assustam:
— Germes não existem. Não consigo vê-los, portanto não são reais — sustentou do sofá curvilíneo que ocupou por uma década no programa Fox & Friends.
Certa vez Hegseth rasgou seu diploma de Harvard ao vivo e leu um trecho do livro “American Crusade” em que desanca as universidades de elite que “envenenam a mente de nossos filhos”. Na vida real, porém, adora mencionar, en passant, que tem graduação em Princeton e pela John F. Kennedy School of Government (Harvard).
É sua obra mais recente, “War on Warriors” (guerra contra guerreiros), que aponta melhor para a temeridade de deixar Hegseth comandar um orçamento militar anual de quase US$ 900 bilhões, um arsenal nuclear e convencional sem paralelo na História, um pessoal ativo de 1,36 milhão de fardados, 811 mil reservistas, um poderio global com 800 bases militares espalhadas pelo planeta, e muito mais.
— Enquanto patriotas da geração do 11 de Setembro lutaram contra inimigos lá fora, permitimos que os inimigos em casa dominassem nosso território cultural, espiritual e político. Nossa retaguarda ficou exposta, e o inimigo avançou — avisa ele.
Lutar contra “extremistas domésticos” como o ex-presidente Barack Obama, os democratas e liberais seria a segunda etapa de uma guerra pela liberdade. O livro é de 2020, mas há poucas chances de os fantasmas de Hegseth terem sumido. Com visão apocalíptica da sociedade, vê no outro uma ameaça existencial. Por isso exorta outros cruzados a “desprezar, humilhar, intimidar e esmagar” o inimigo interno.
— O tempo está acabando para o país — anuncia. — Será uma guerra sagrada de 360 graus pela causa da liberdade (...) até a aniquilação total da esquerda. Nos veremos na zona de combate! Juntos, com a ajuda de Deus, salvaremos a América. Deus vult!
Socorro.
GLOBO