O placar de Brazão
MALU GASPAR
‘Não é sobre Marielle Franco’, foi o que mais se ouviu nos últimos dias da turma do Movimento Brazão Livre, que trabalhou firme para fazer a Câmara tirar da prisão o deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), acusado de ser um dos mandantes do assassinato da vereadora carioca.
“Também não é sobre Brazão”, seguia o argumento. “É uma resposta ao Supremo”, martelavam ad nauseam lideranças e deputados de vários partidos, incluindo petistas que não repetiriam isso em público de jeito nenhum.
Tudo bem, ninguém duvida de que uma ala significativa do Parlamento estava sedenta para se vingar do ministro Alexandre de Moraes e do STF. Nesse caso, porém, há mais coisas entre o céu e a terra da capital federal do que a repulsa a Xandão.
A operação contra Brazão não foi a primeira medida de força imposta pelo STF e Moraes ao Congresso. Ficaram marcados nos caderninhos dos congressistas, em especial nos da direita, a prisão do bolsonarista Daniel Silveira por agressões a ministros do Supremo, em 2021, e as ações de busca e apreensão nos gabinetes de Carla Zambelli (PL-SP) e Carlos Jordy (PL-RJ).
Em nenhum desses casos, porém, houve tanta mobilização a favor de um parlamentar, e não dá para dizer que antes não havia revolta em Brasília. Apesar de ter perdido no plenário, Brazão foi mantido na prisão por um placar apertado — 277 votos, só 20 acima do mínimo necessário.
No caso de Silveira, a prisão foi mantida por 364 votos. O placar dos que votaram pela soltura foi praticamente o mesmo para os dois: 130 e 129 votos.
A mudança é que, agora, 105 deputados ou faltaram ou se abstiveram, porque não queriam ver seus nomes no placar pró-libertação, mas tampouco tinham a ganhar constando na coluna pró-prisão. Quem lá atrás não se incomodou em deixar Silveira mofando na cadeia para não se indispor com Xandão desta vez achou melhor não se aventurar contrariando Brazão.
Considerando que falamos de um integrante do baixo clero que nunca fez nenhuma diferença para além do seu quintal, fica difícil explicar o que ocorreu na Câmara dos Deputados nos últimos dias sem olhar com atenção para este Triângulo das Bermudas político chamado Rio de Janeiro.
Tanto Silveira como Brazão foram eleitos pelo Rio. Mas, diferentemente do primeiro, o clã de Chiquinho não apenas povoa a política local há décadas, como também espalhou ramificações por amplos setores do estado e da prefeitura.
Do Departamento de Transportes Rodoviários (Detro) à Habitação ou à Polícia Civil de Cláudio Castro, passando pela Assembleia Legislativa, pela Câmara Municipal e pela prefeitura de Eduardo Paes, para onde quer que se olhe se poderá ver um aliado dos irmãos Brazão ocupando um cargo-chave.
O próprio Chiquinho Brazão foi secretário de Ação Comunitária de Paes até fevereiro passado. Só deixou o cargo quando começou a circular nos bastidores a informação de que o matador de Marielle, Ronnie Lessa, apontara o dedo para ele e para o irmão, Domingos.
Sua presença no secretariado era parte de um acordo em troca do apoio à reeleição do prefeito em outubro, num bonde de que fazem parte Waguinho (Republicanos), prefeito de Belford Roxo cuja mulher chegou a integrar o ministério de Lula, e o ex-deputado Eduardo Cunha, aliado e uma espécie de guru político que por décadas fez dobradinhas eleitorais com o clã.
Em 2022 Chiquinho ainda subiu no palanque da campanha de Jair Bolsonaro. Além disso, o eleitorado dos irmãos Brazão sempre foi concentrado em áreas dominadas por milícias, com as quais, segundo a Polícia Federal, eles têm “intrínsecas relações”.
É esse contexto de promiscuidade explícita da política com o crime e com a impunidade que ajuda a explicar por que Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro atuaram em favor de Brazão — Eduardo, o filho Zero Três, chegou a gravar um vídeo pela soltura —, enquanto Paes procurou de todas as formas ficar longe do assunto publicamente, para não afetar suas alianças na campanha de logo mais à reeleição.
Nada disso quer dizer que a tensão entre o Congresso e o Supremo não tenha interferido no resultado de ontem. Mas não dá para entender tanto esforço sem considerar que, quando se trata da política fluminense, periga a força do clã Brazão ser bem maior que a ojeriza a Xandão.
GLOBO