Jogo de cena da morte
Guilherme Coelho
Numa sala no 6º andar de um prédio na rua do Russel, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, Eduardo Coutinho assistia a fitas VHS com gravações de depoimentos de Roberto Jefferson na CPI do Mensalão.
Interessado na retórica, na desfaçatez, no histrionismo e na combinação
de camisa e gravata roxas do então deputado federal, Coutinho imaginou
uma atriz fazendo o papel de Jefferson, repetindo as suas falas. Talvez Fernanda Montenegro. Talvez vestindo um terno roxo. Ali nasceu o documentário "Jogo de Cena", de 2007, marco do cinema brasileiro.
No domingo (23) assistimos à mesma teatralidade e despudor de 2005, só que agora em versão armada. Numa série de vídeos, Jefferson narra serenamente a abordagem da Polícia Federal a sua casa, a troca de tiros com os policiais, sem se esquecer de acrescentar suas tenebrosas razões para a cena de faroeste. Tudo isso usando óculos de desenho animado.
É valioso analisar dois destes vídeos. Um antes da troca de tiros, o outro depois. Em ambos, apenas ouvimos Jefferson; em ambos, respiração e emissão de voz são idênticas. Ausentes estão o embaraço e a adrenalina. Sintoma de sociopatia? Não espantará se Jefferson pedir para ser considerado inimputável.
De tropa de choque de Fernando Collor à franja radical da extrema direita, o percurso de Jefferson é espantoso e sintomático, pois descreve, com o exagero típico das óperas, a trajetória menos bufante percorrida por parte não insignificante do país. Não falta sequer o elemento cristão. Jefferson agora se apoia em Jesus de Nazaré para justificar a sua delinquência e tentativa de homicídio. Deixo para os historiadores e profissionais da alma decidir por onde passa a linha —se é que passa— que separa fanatismo mequetrefe de oportunismo calculista. De certeza mesmo, apenas o fato de que estes vídeos agora são parte da história brasileira.
Isso daria (e provavelmente dará) um filme.
Mas prefiro pensar o Brasil como pensou Beth Carvalho, tal qual revelado no ótimo filme "Andança", de Pedro Bronz, com produção de Roberto Berliner. Recentemente lançado no Festival do Rio e agora na Mostra de São Paulo, objeto de acolhida consagradora, o filme é um abraço que se dá no Brasil (em vez de um tiro). Um Brasil que é mais "Paloma" —o doce e preciso filme de Marcelo Gomes, grande vencedor do Festival do Rio de 2022, também presente na mostra.
Um Brasil não apenas mais alegre, mas também mais criativo. É o que queremos. Um cinema que questione velhas representações, que radicalize as suas formas e, assim, que seja capaz de lançar a luz necessária para nos ajudar a sair desse buraco.
"Sejamos otimistas, deixemos o pessimismo para tempos melhores." Essa
frase, das mais lindas pichadas nos muros de Paris em maio de 1968, foi
recentemente lembrada por João Salles, amigo e produtor de Coutinho. Nos serve bem.
FOLHA