A cena de Jefferson não fecha
Elio Gaspari
Algum dia Roberto Jefferson contará o que ele tinha na cabeça no domingo. Por enquanto, de certo só há uma coisa: uma semana antes da eleição ele acertou o pé de Jair Bolsonaro.
Em décadas de atividade nos tribunais, no Congresso e até mesmo na televisão, ele provou-se pessoa experiente. Nos vídeos das oito horas de tumulto, mostrou-se no completo controle dos nervos. Deu dezenas de tiros de fuzil e lançou três explosivos na direção dos agentes federais que foram capturá-lo. Jefferson controlou seu roteiro. Como advogado, ao insultar a ministra Cármen Lúcia, ele sabia que sua prisão domiciliar seria revogada. Mártir, ele nunca quis ser.
Obteve o descontrole de seus aliados. Bolsonaro demorou para dissociar-se dele. Quando o fez, cometeu a imprudência de dizer que nunca apareceu em fotografias ao seu lado. Bastaram alguns minutos para que aparecessem duas. Esse tipo de reação ilustra a capacidade do capitão de atravessar o espelho da realidade, quer dizendo que nunca foi fotografado com Jefferson, quer praticando sua medicina particular.
Na sua ponta da coreografia, Jefferson trouxe para a cena de sua rendição o notável Padre Kelmon, celebrizado no debate presidencial na função de preposto do bolsonarismo.
Jefferson é um aliado tóxico. Quando ele se alinhou ao bolsonarismo, já havia feito história em 2005, cavalgando a denúncia do mensalão petista com a autoridade de parlamentar da base de apoio do governo. Teve seu grande momento dramático quando interpelou José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil, dizendo-lhe “Vossa Excelência provoca em mim os instintos mais primitivos”.
Os instintos primitivos de Jefferson deram-lhe a publicidade que pretendia. Seus instintos refinados buscavam algo que só ele poderá dizer o que é. Sabia que voltaria ao regime fechado. Dizia ser a semente de alguma coisa, mas não se sabe o que é.
Se dessa semente brotou alguma coisa, a planta mostrou a incapacidade do governo de agir numa crise. Foi assim no atacado da pandemia, e assim foi nesse episódio varejista. Num só lance, viu-se o produto da política armamentista de Bolsonaro. A resistência do ex-deputado tinha um componente teatral. O que acontecerá quando seu papel for repetido por um doido de verdade? Jefferson disse, falsamente, que não matou policiais porque não quis. Não quis porque não pretendia morrer.
O conjunto da obra de Bolsonaro e Jefferson mostra um país abalado por teatralidades enquanto convive com milhões de desempregados e gente passando fome.
Há quatro anos, quando foi eleito, Bolsonaro anunciou que acabaria com o ativismo. Produziu episódios de ativismo inédito, como os de Jefferson e do espetaculoso Daniel Silveira, que perdeu a eleição para o Senado, mas teve 1,5 milhão de votos no Rio de Janeiro. É um ativismo chinfrim, violento na retórica e imprestável nas propostas.
O Brasil tem uma indústria decadente e um
agronegócio pujante, ameaçado por embargos internacionais. As universidades
vivem ameaçadas de cortes. O SUS sofre um cerco da rapinagem. Morreram mais de
680 mil pessoas na pandemia, e as circunstâncias colocam no centro dos debates
o surto de Roberto Jefferson.
GLOBO