Um enorme passado pela frente
De ANTONIO PRATA
Quando, em meados da segunda década do
século 21, os mamíferos bípedes mais conhecidos como homo sapiens (ou
ainda mais conhecidos como Claudisney, Marilu, Mohammed, Juanito da
Catimbira, Xin Sun Lun, Earl Dwight, Um Dois Três de Oliveira e Quatro e
por aí vai, dependendo da origem, das predileções e delírios de cada
progenitor), enfim, como eu ia dizendo, quando, em meados da segunda
década do século 21, os seres humanos assistiram à eleição de Donald
Trump à presidência dos EUA, à disputa de nove times de futebol pelo
passe do detento Bruno e ao presidente (sic) da República (sic), Michel
Temer ("sick"), no Dia Internacional das Mulheres, apontando as compras
de supermercado e os cuidados com o lar como a grande contribuição
feminina à sociedade, muitos pensaram: cazzo, estamos voltando no tempo?
Cazzo, estávamos. Por conta de um
revertério cósmico já intuído por físicos desde o início do século 20
(Lamaître, Penzias, Wilson, Dicke, Gamow et al.), após 13 bilhões e 700
milhões de anos se expandindo, o Universo perdeu o impulso que vinha lá
do Big Bang e, como uma bexiga esquecida atrás da piscina de bolinhas
num bufê infantil -mas que tivesse em si a própria bexiga, a piscina de
bolinhas e o bufê infantil-, começou a encolher.
O que os físicos não sabiam é que, ao
murchar, nesta melancólica andropausa astronômica, o balão arrastaria,
além do espaço, o tempo, que passaria a correr para trás. O retrocesso
foi rápido. Grafites coloridos em São Paulo voltaram a ser muros cinza. A
bicicleta foi desestimulada em favor dos velhos carros, que recobraram,
a 90 km/h, o direito de matar livremente nas marginais. O Obamacare foi
cancelado por Trump. Pelas ruas dos EUA, membros da Ku Klux Klan
puderam ser vistos levando seus lençóis pra passear. A economia
brasileira retornou aos números de 2010. Os russos se tornaram
ameaçadores outra vez. O fisiologismo mais chão da nossa política e
economia, que por 20 anos se disfarçou (mal e porcamente) detrás de
tímidas reformas sociais, escancarou seus caninos de Conde Draga e, para
"estancar a sangria", os meteu na nossa jugular.
No começo, a volta ao passado foi
difícil: tivemos que atravessar de novo a dívida externa e os Menudos, o
Plano Funaro e o Ilariê, sem falar do fascismo, do nazismo, da peste
negra e do inconveniente de topar, numa segunda-feira à tarde, com o
exército de Gengis Khan. Não foi fácil, também, nos desapegarmos das
conquistas da civilização, tais como o cortador de unha, a poltrona
vibratória com porta-copo, o Polenguinho de bolso. Mas depois de muito
sofrermos, tendo ultrapassado Torquemada e Tutancâmon, tendo
reconstruído pirâmides e cruzado o mar Vermelho, eis que chegamos à
origem dos séculos e retomamos a terra prometida. Nesse Éden terreno não
havia emprego nem Facebook, buzina ou despertador, éramos todos
caçadores coletores andando nus pelas florestas, tomando banho de
cachoeira, comendo cajus, amêndoas e javalis. Claro que de vez em quando
um de nós era jantado por um leão, mas ser jantado por um leão é um
preço justo a ser pago pela liberdade, além de ser uma morte épica,
muito mais bela do que ter as artérias entupidas pela gordura saturada
do Polenguinho, após anos sentado numa poltrona vibratória, cortando as
unhas dos pés. Regozijai-vos, irmãos: como dizia Millôr Fernandes, temos
"um enorme passado pela frente".