‘Me amem menos!’, dizia Pereio
'Conheci outro Paulo César Pereio, um cara que liga no seu aniversário, que, ao saber que você está doente, te leva uma canja, que vai te dar um livro que ele tem porque sabe que você vai adorar'
Por Allan Sieber
“Estilo é a resposta a tudo/ Uma maneira nova de abordar algo chato ou perigoso,/ Fazer algo chato com estilo é preferível a fazer algo perigoso sem, /Fazer algo perigoso com estilo é o que eu chamo de arte”, disse Charles Bukowski. Minha relação com Paulo César Pereio começou em 2000, quando o chamei para dublar a si mesmo na animação “Os idiotas mesmo” e desde então foi um carrossel de emoções, geralmente sem cinto de segurança.
O que falar desse homem que já não foi falado? Pois talvez eu tenha uma ou mil coisas para falar...
Pra começar, esqueçam essa imagem do Pereio escroto, figura detestável, animador profissional de barracos — em que ele era o principal culpado de tudo — e fanfarrão suicida. Tá bom, ele meio que era tudo isso mesmo, mas eu conheci outro Pereio, ou Pereba, para os mais chegados. Um cara que liga no seu aniversário, um cara que, ao saber que você está doente, te leva uma canja. Um cara que vai te dar um livro legal que ele tem em casa porque sabe que você vai adorar esse livro. Um sujeito que vai te defender mesmo você estando completamente errado. Aquele esquema: para os amigos, só o melhor. Os inimigos? Ah, quem se importa com esses caras. Pra começar, é muita gente para lidar.
Pereio, ator monstro, o último de sua espécie — como um Dodô — se foi. Que tristeza.
Erudição do Mestre da Vida
Saudades de suas piadas escrotas, seus esporros teatrais e sua erudição infinita. Seus monólogos com referências que ele não se importava nem um pouco se você ia entender. Não tá entendendo? Vai atrás e procura saber do que eu estou falando, meu chapa — esse era o estilo de um verdadeiro Mestre da Vida. Eu te dou uma dica, não sou seu professor, amiguinho.
Pereio transbordou essa definição de melhor ator brasileiro. Ele já era outra coisa. Como um Serge Gainsbourg ou um Hunter Thompson, que estavam milhas além de ser simplesmente grandes no seu ofício, definiram um novo marco, uma nova abordagem mais selvagem e sem se importar com a tal da popularidade (a cocaína dos dias que correm).
Ele vai te sacanear? Possivelmente. Ele do nada vai te dar um esporro homérico? Vai, com requintes de crueldade. E depois vai te contar a história mais engraçada e perversa do mundo e você vai morrer de rir.
Marlon Brando, James Dean, Klaus Kinski, ele é dessa turma. Não é uma turma fácil, não é uma turma para você levar em festas caretas, mas pode apostar, meu amigo, ele vai seduzir todo mundo na festa, mesmo mijando na pia.
Isso se chama talento, isso se chama carisma, magnetismo natural. Isso não se ensina na escola. Isso e o tal “senso de escrotidão”, que ele prezava tanto. Mas calma lá, ser escroto com classe não é para qualquer um, muita gente acaba na vala perseguindo esse ideal.
Ele tinha razão
Pereio era surfista de trem na vida, jogava roleta-russa com os mortos e os vivos, surfava sem cordinha em ondas de tsunami. Essa coisa de “se joga”, que tá na boca de qualquer Zé das Couves hoje em dia, para ele era profissão, se jogava mesmo.
E sabem qual era a coisa mais irritante em Paulo César Pereio? Ele SEMPRE tinha razão no final das contas.
Agora lembrei de “A marca da maldade”, do Orson Welles e o capitão de polícia Hank Quinlan, protagonizado pelo próprio Welles.
Fiquemos com as palavras finais de Tanya, interpretada por Marlene Dietrich, sobre Hank: “He was some kind of a man... What does it matter what you say about people?” (“Ele era homem de uma categoria... Bem, de que importa o que você diz sobre as pessoas?”, em tradução livre)
Adeus, Pereio. Você já está fazendo falta.
Allan Sieber é cartunista e codiretor do documentário “Pereio, eu te odeio”
GLOBO