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    sexta-feira, agosto 18, 2023

    Santa Sinéad

    Gabriel Trigueiro

     Se você é mais ou menos velho(a) como eu (e bem-vindo(a) aqui ao conceito de “mais ou menos velho(a)”) a imagem que você tem da Sinéad O’Connor, falecida agora em 26 de julho de 2023, provavelmente deve ser 1) ela rasgando uma foto imensa do Papa João Paulo Segundo, em protesto contra a epidemia de escândalos sexuais envolvendo a Igreja Católica, durante performance no Saturday Night Live ou 2) o clipe minimalista em que ela canta Nothing Compares 2 U, aquele cover lindão do Prince, você sabe. 

    Meu argumento aqui é o de que a artista irlandesa foi muito mais do que isso e que a sociedade no mínimo lhe deve desculpas, porque sempre a tratou com a misoginia mais arrombada e abjeta possível. Vamos às evidências.

    No episódio da semana seguinte ao que ela rasgou a foto do Papa, o SNL deu aquele monólogo de abertura para o Joe Pesci — que apareceu com a foto do João Paulo II colada/remendada e ainda meteu que se o programa fosse dele, ele teria dado umas porradas na Sinéad O’Connor. No que foi prontamente ovacionado pela audiência, diga-se de passagem.

    Sinéad O’Connor foi amplamente criticada quando, depois de ganhar nada menos do que quatro indicações, sinalizou publicamente que boicotaria o Grammy. Também recebeu críticas e, mais uma vez, ameaças físicas (dessa vez de ninguém menos do que Frank Sinatra), quando recusou polidamente que fosse tocado o hino nacional antes de um show seu em Nova Jersey.

    Como ela disse na época: “Anthems just have petrifyingly contagious associations with squareness unless they’re being played by Jimi Hendrix”. Além da ameaça de Sinatra, MC Hammer (pois é) foi abertamente xenófobo e cuzão e se ofereceu a ela para comprar uma passagem só de ida para a Irlanda.

    Sobre a ameaça de Sinatra, Sinéad declarou quase asceta: “I love Frank Sinatra. Who doesn’t love Frank Sinatra? What’s not to love?... Even to have been threatened with physical violence by Frank Sinatra is an honor.” 

    Aparentemente o maior crime de Sinéad O’Connor era o de não ter aceitado e abraçado incondicionalmente o papel de uma estrela pop passiva, de rosto angelical.  

    A verdade é a de que ela conduziu sua vida em torno de uma busca espiritual incessante e absoluta. Em um desses plot twists malucos e irônicos da vida, chegou a ser ordenada padre, por um grupo católico independente, sem ligações com a Igreja de Roma.

    Foi Bernard Shaw, no prefácio da sua peça sobre Joana D’Arc, quem argumentou que quanto mais cristão você fosse, maior seria a sua disposição anticlerical.

    Nesse sentido, nada mais cristão do que rasgar a foto do Papa, em rede nacional. De todo modo, em 2018 ela se converteu ao Islã e mudou seu nome para Shuhada’ Sadaqat — ainda que tivesse continuado a assinar Sinéad O’Connor em discos e apresentações.   

    Sinéad foi uma artista brilhante, original e versátil. Fosse regravando Cole Porter, Nirvana, Prince, alguma canção folclórica irlandesa, um reggae ou um dub. Além disso, foi uma importante aliada e uma early adopter do movimento hip hop — em uma época em que isso não rendia qualquer tipo de capital social, pelo contrário.

    Em 1988 não pensou duas vezes antes de chamar a MC Lyte para remixar seu single “I Want Your Hands (On Me)”, atitude que abriria inúmeras portas para mulheres negras no rap e na indústria musical mais mainstream. 

    Sinéad O’Connor também se apresentou no 31º Grammy, o de 1989, com a logo do Public Enemy estampada na própria cabeça, quando a comunidade do hip hop boicotou o Grammy daquele ano, porque, bem, se hoje ele ainda é um evento ridiculamente racista, agora imagina aquele troço no final da década de 1980.

    Sinéad O’Connor tem um tamanho e relevância na cultura popular e na história da música que lhe é raramente reconhecido. Puta que o pariu, né, já passou da hora de uma revisão histórica.

    CONFORME SOLICITADO 
    https://conformesolicitado.substack.com/i/135852568/santa-sinead

     

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