Picasso: aos 50 anos de morte, misoginia e visão colonista do pintor são debatidas
Por Talita Duvanel
Em 2018, a comediante e historiadora da arte Hannah Gadsby falou, no show “Nanette”, exibido na Netflix, que odiava Pablo Picasso. Reconhecia sua importância, mas expunha para milhões de pessoas um ponto que críticas feministas de arte já discutiam desde os anos 1970: Picasso era misógino — e expressou, em muitas de suas obras, marcas das relações abusivas que perpetrou e da visão colonialista que mantinha.
No cinquentenário da morte do espanhol, que faleceu em 8 de abril de 1973, na França, aos 91 anos, não só Hannah como muitos curadores têm tido mais espaço para problematizar a obra do artista ao expô-la. Tudo de forma mais conectada com as discussões do século XXI, mas sem cair nas armadilhas da cultura do cancelamento.
— Podemos ter dois sentimentos ao mesmo tempo: admiração pelo trabalho e um desgosto profundo pelo tratamento que ele dava às mulheres e às culturas não europeias das quais se apropriou —diz Catherine Morris, curadora da coleção Elizabeth A. Sackler Center for Feminist Art, do Brooklyn Museum, em Nova York. — Cancelamento é uma manobra inventada pelas redes sociais para perpetuar um engajamento simplório.
Catherine é curadora, com Hannah Gadsby e Lisa Small, da exposição “Pablo-matic: Picasso according to Hannah Gadsby” (“Pablo-matic: Picasso segundo Hannah Gads- by”), que começa em junho no Brooklyn Museum. Como parte das comemorações no Hemisfério Norte chancelada pelos governos de França e Espanha, a mostra justapõe produções do espanhol a obras de artistas feministas do século XX e XXI.
A ministra francesa da cultura, Rima Abdul Malak, fez questão de dizer, na época do lançamento das ações comemorativas, que “não se pode esconder a cara” na hora de falar da arte de Picasso, principalmente, para as novas gerações.
Nascido em Málaga, na Espanha, em 1881, Pablo Ruiz Picasso recebeu expressivo reconhecimento não só na pintura, em que é considerado o principal nome do Cubismo, mas também na escultura, gravura e em outras áreas de expressão.
No entanto, enquanto estabelecia sua pujante carreira, construiu também a imagem de “amante” de relações turbulentas. Uma das mulheres mais famosas de sua biografia — e quadros — foi a francesa Marie-Thérèse Walter (1909-1977). Ela tinha 17 anos quando começou a se relacionar com ele, já um artista famoso e casado, de 45. Fotógrafa de sucesso, a também francesa Dora Maar (1907-1997) foi outra das mulheres que ele retratou — sendo acusado de abusar dela física e psicologicamente.
—A pintura que Picasso fez de Dora Maar chorando (“A mulher chorando”, 1937) é o retrato de uma mulher abusada. Não podemos deixar de falar isso — diz a escritora espanhola e professora de história de arte Maria Llopis, que, em março de 2021, foi para o Museu Picasso em Barcelona com suas alunas vestindo blusas com os dizeres “Picasso abusador” e “Dora Maar presente”. — Não queremos que essa pintura saia do museu, muito pelo contrário. Queremos que esteja lá, que as pessoas a vejam, mas sabendo o que estão olhando.
Mas não seria o machista Picasso “um homem do seu tempo”? Este argumento está sempre presente nas discussões que conectam a vida pessoal do homem à vida artística do “gênio”. Nas releituras, a ideia é problematizar essa frase também. A espanhola Maria Llopis, por exemplo, rechaça essa ideia.
— O argumento é muito injusto com os homens daquele tempo que não era abusadores. E eu gostaria que abuso fosse um problema daquele tempo e não fosse mais (hoje em dia) — diz.
Curadora assistente do Museu de Arte de São Paulo (Masp), Laura Cosendey lembra de outro pintor que sofre críticas semelhantes.
— É muito complexo olharmos a arte do século XX com nossos olhos e pautas atuais. Mas é importante também não sermos condescendentes e normalizarmos tudo o que aconteceu nas escolhas pessoais dos artistas, ainda mais quando nos voltamos para um Picasso e para um Gauguin, que são muito emblemáticos.
Laura cita o artista francês Paul Gauguin (1848-1903)tema de uma exposição no Masp, a partir do próximo dia 28 de abril. Na mostra, haverá também uma discussão crítica sobre a produção dele no Taiti:
— Gauguin teve relações com menores de idade lá. Não somente se aproveitou, mas ocupou a posição de homem branco europeu colonizador. Não foi o único, nem o último, mas iso não era normal.
GLOBO