Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
segunda-feira, março 06, 2023
Navegando sem bússola
Para que monitorar os níveis de popularidade e avaliação positiva de um candidato se, na hora de votar, os eleitores vão ignorá-los?.Marcos Coimbra.Saímos da eleição perplexos, com a sensação de não entender o País. O Brasil havia se tornado incom- preensível, com uma sociedade e uma vida política inexplicáveis. Nos dois pri- meiros meses de 2023, as coisas piora- ram. Nem tanto pelo que vimos em 8 de janeiro, mas pelo que não vimos. Al- guns dias depois da irrupção de toda aquela estupidez estávamos de volta à “normalidade” dos últimos anos. Nem sequer uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi instalada para manter em pauta a discussão. A mesma que não foi criada para apurar a responsabilida- de pelo massacre do povo Yanomâmi, uma oportunidade de nos fazer pen- sar no país que queremos ser. Através dos dois silêncios, é como se reconhe- cêssemos que estamos onde a eleição mostrou, à beira da barbárie, sempre em risco de nos perder por dentro dela. Está claro que o mais assustador no resultado do pleito foi a quantidade e a distribuição dos votos que o capitão re- cebeu. Quase a metade do eleitorado o preferiu, sendo majoritária na parte mais rica e desenvolvida do País. Con- siderando quem é Bolsonaro, sua tra- jetória política e o que foram os quatro anos em que esteve à frente do governo, a eleição brasileira foi mais surpreenden- te do que qualquer outra no mundo de hoje. Por piores que sejam personagens como Donald Trump, Boris Johnson e Narendra Modi, para ficar apenas nos principais expoentes da direita inter- nacional, nenhum é tão ruim, no plano moral e intelectual, tão incompetente e cafajeste quanto o brasileiro. Para pio- rar, alguém que se apresentou como can- didato de si mesmo, enquanto os outros disputaram eleições como representan- tes de grandes e tradicionais partidos. O voto dado a Bolsonaro é a radicali- zação de um modo de votar no qual são irrelevantes a biografia, os atributos e o desempenho dos candidatos. Ao contrá- rio do que ensina o bê-á-bá da política e do consagrado no senso comum, metade do eleitorado brasileiro escolheu um re- presentante sabidamente desqualifica- do e incapaz de realizar uma administra- ção adequada, como o capitão demostrou ao longo do período em que esteve senta- do na cadeira de presidente. Se escolhê- -lo podia ser desculpado em 2018, foi ir- racional insistir em seu nome na eleição seguinte ou preferi-lo a qualquer outro. A irracionalidade quevimos na elei- ção, expressa no vasto contingente que mostrou querer a continuidade do que sabia ser um governo medíocre ou mau (precariamente justificado por seus elei- tores mediante desculpas como a pande- mia e a “perseguição” que teria sofrido das “elites”), é um problema complica- do para Lula. Desde quando resolveu ser candidato, o presidente apostou que recuperaria o lugar que merecia na opi- nião pública, a aprovação e avaliação po- sitiva que tinha antes de sofrer o ataque sem tréguas desfechado contra ele e o PT, capitaneado pela indústria da comuni- cação, que o levou à prisão. Estava con- vencido de que conseguiria voltar a fa- zer um bom governo, capaz de melhorar a vida das pessoas, especialmente as mais necessitadas. Trabalharia com gente de bem, tinha boas propostas e imaginava que seria julgado na comparação com o caos herdado da gangue que saía. É certo que seus eleitores irão apro- vá-lo, mas é incerto que o eleitorado do capitão consiga (ou queira) ver algum avanço no volume e na qualidade da ação do governo. Ao contrário, é possí- vel que considere que tudo está igual (se- não pior) e que eventuais melhoras re- sultem da “herança bendita” do anteces- sor. De um lado, dado o estado calamito- so em que Lula recebeu o governo, am- pliou-se o prazo para que mudanças po- sitivas sejam perceptíveis. De outro, não há motivo para confiar na racionalidade de quem se mostrou tão pouco racional. Não foi apenas no Brasil que o con- ceito de aprovação do governo perdeu relevância na vida política, como vi- mos em eleições recentes mundo afo- ra. Se quase a metade do eleitorado vo- tou em um candidato que havia se re- velado um presidente ruim ou péssimo, que importância tem o desempenho ob- jetivo de um governante como critério de escolha eleitoral? Para que monito- rar seus níveis de popularidade e ava- liação positiva se, na hora de votar, os eleitores vão ignorá-los? No ano que vem, teremos eleições para prefeito e vereador e, em mais três, elei- ções gerais. Fora verdades banais e ob- viedades, ninguém sabe o que o Brasil pensa e como chegaremos a elas. Só sa- bemos que (quase) tudo que consideráva- mos conhecido está posto em dúvidaCARTA CAPITAL