ERA UMA VEZ HORRÍVEL
Marcílio Godoi >
"Lá em cima do piano tem um copo de veneno", dizia uma parlenda tipo uni-duni-tê de minha infância. Segundo seus versos, "quem bebeu, morreu: de menos... eu", que, apesar de menino bobo, ficava meio confuso com o fato de deixarem um copo de veneno, assim, de bobeira em cima do piano, sei lá, como um copo de uísque amanhecido.
E ainda tinha esse triste desfecho, uma criança desavisada bebe a poção maligna, tendo sido assassinada culposamente. Entretanto, vivas ao individualismo!, ao menos não fui eu. Morreu o Abreu. Caramba.
A estupidez desses versos populares infantis só perdia para a violência de suas imagens. Como, por exemplo, o serrador ir lá e serrar "o papo do vovô". Numa boa a gente repetia, "Serra, serra, serra... cantando com doçura a imensa crueldade com o velhinho.
Agora imagina que sacanagem: mandar um "boi da cara preta" pegar uma menina só porque ela "tem medo de careta". Sei lá, às vezes acho que somos uma geração sobrevivente de tanta maldade. Ter tanto filha da puta no mundo faz sentido.
Enfim. Crescemos assim. Naturalizando absurdos como "uma barata na careca do vovô" — sempre o coitado do vovô — ainda bem que não havia etarismo no caso, era só um cadáver insepulto na casa, juntando bicho. Deve ser.
E essa outra?, pelo fato de o papai ter ido trabalhar e a mãe ter dado um pulinho na roça ser já um motivo suficiente para a cuca vir "pegar" a criança. Bicho, na boara era um inferno, a infância.
Bem. De todos esses terrores impostos a nós ao longo de toda a meninice, e principalmente à noite, o que mais me marcou foi ouvir repetir sempre que Sambalelê tava doente, tava com a cabeça quebrada... e ainda assim mandávamos insistentemente a coitada sambar! Samba, samba, samba!!!
E se por acaso ela se recusasse? "Sambalelê precisava é de uma boa lambada". Jesus, eu me desesperava com a prática explícita daquela tortura. Lambada era o mesmo que chicotada, gente! Oi?!
Todos vivíamos num parquinho macabro, agora percebo bem, quando me lembro daquela famosa “Dança, neguinha, não sei dançar, pega no chicote que ela dança já!” — Ninguém enxergava a brutalidade disso?
Nesse contexto, tinha gente que atirava o "pau no gato" só para dona Chica se admirar, e fazia a galinha do vizinho botar ovo amarelinho em uma contagem infinita. Bota um, bota dez, bota mil! Desalmados!, — eu gritava — sem que me ouvissem.
Depois iam, freneticamente gritar no meu ouvido que a barata tinha o pé cabeludo e rir, desaforadamente na cara dela, o bullyng repisado nela: "Hahaha, hahaha, o pé dela é cabeludo!". Nem Kafka intentaria representar esse horror.
De minha partezinha, eu ainda tentava lidar com a imagem da rosa despedaçada pelo cravo debaixo de uma sacada. Feminicídio à luz do pátio! E nem mencionavam a Maria da Penha, o Samu, sei lá, na letra.
Era um tal de Lobo pegando criancinhas pra fazer mingau eu até posso compreender, “tenho um bom petisco para encher a minha pança!”, era uma hipérbole divertida. Mas soldados sendo presos no quartel simplesmente porque não sabiam marchar direito? Se bem que eu nunca gostei de polícia. Teje preso mesmo! Confesso que eu gostava dessa parte!
Lembrei-me dessas coisas de naturalização da violência ontem, quando, numa festinha infantil aqui no meu prédio, vi uma moça fazendo escultura de balões para as crianças. De todas, a mais pedida era, disparadamente, sem trocadilhos, a de uma AR15. Juro. Nada mudou. Ou talvez tenha até piorado, viu?
Os meninos corriam a festa inteira, pra lá e pra cá, atirando, brincando de Wilson Witzel na favela, da dupla Derrite-Tarcísio na ocupação, de Jair Bolsonaro em campanha. Pensei nesses meninos grandes, talvez seus pais ainda os ensinem outras coisas também.
Mas não sei, melhor não. Pensei de novo, estou confuso, tentando ser otimista. Quem sabe ir lá, fazer uma micropoliticazinha da paz, levantei-me para ir dar o toque aos ilustres progenitores, mostrando que aquilo era um treinamento para o genocídio, mas me contive no caminho.
Sei que não estamos em tempos de muita compreensão. Na real, tive medo que me fuzilassem. Para dizer a verdade, acovardei-me naquele soturno "cai-cai, balão", ensaboado, na rua do sabão: "Não vou lá, não vou lá, não vou lá....
Tenho medo de apanhar".
(Img. Le Ballon Rouge - "The Red Balloon" - 1956, Albert Lamorisse)



