Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
sexta-feira, junho 20, 2025
A MAIOR FAKE NEWS DA MPB
Julio Maria
Fake news eficiente é aquela capaz de se acomodar na história como a única versão. Com o tempo, acusadores, acusados e mediadores (biógrafos, pesquisadores, professores, jornalistas e artistas) a reproduzirão sem checar nada simplesmente porque, sobre ela, jamais pairou dúvida alguma. E com mais algum tempo, ninguém saberá que aquela verdade, na verdade, nunca foi verdade, mas uma ex-mentira.
A que mais me dói por ter sido eu também um de seus propagadores diz respeito à já oficializada pelo Wikipedia, e com iniciais maiúsculas, Passeata Contra a Guitarra Elétrica. Todos falam desse negócio. E a história impregnada é mesmo uma delícia: em uma noite de 1967, a cúpula da MPB saiu pelo centro de São Paulo marchando contra a guitarra elétrica. Empunhavam faixas e gritavam palavras de ordem contra o instrumento e todo o imperialismo opressor que ele simbolizava. Nunca entendi por que não fizeram logo um documentário sobre isso.
Nos divertimos com algum sarcasmo dizendo que Gil, o mesmo que levou a guitarra elétrica para a base do Tropicalismo, estava lá de braços dados com Elis Regina pedindo as cabeças da Jovem Guarda. Que Edu Lobo, Zé Keti e Geraldo Vandré bradavam ordens contra os invasores norte-americanos. Que Nara Leão e Caetano assistiram a tudo de uma janela do Hotel Danúbio.
Gil fala que só foi à passeata por estar apaixonado por Elis. Caetano se lembra da cena. Houve sim uma marcha, e com muito mais artistas do que se conta. Mas a razão de sua existência era outra. A TV Record precisava conter o derretimento da audiência de programas ligados à MPB. Teoricamente, o interesse por eles vinha caindo desde a estreia do Programa Jovem Guarda, em 1965. (Será mesmo? Se esses programas eram exibidos em dias diferentes, como concorreriam em audiência?).
A emissora criou então o Frente Única da Música Popular Brasileira, um especial que seria apresentado por dois artistas diferentes a cada edição e que contaria com a participação da tropa de elite egressa dos festivais: Elis, Nara, Juca Chaves, Chico Buarque, Simonal, Jair, Gil, Edu Lobo, MPB-4, Geraldo Vandré. Todos jovens, bonitos e cheios de fãs.
A direção da emissora bolou o seguinte: por volta das 20h do dia 17 de julho de 1967, a data da estreia, os artistas se reuniriam no Largo São Franscisco, levantariam uma faixa com o nome do programa e caminhariam pela Avenida Brigadeiro Luis Antônio até o Teatro Paramount, onde o especial seria gravado. A jogada de mestre? Não havia nenhum cartaz com o nome da TV Record. Logo, tudo pareceria um ato espontâneo da classe artística (que só estava lá para divulgar um programa) apoiado pelo povo (que só estava lá para conseguir autógrafos de seus ídolos). Tão genial que acreditamos nisso até hoje.
Dois artistas se livraram da cena do crime que nunca houve por sorte. Chico Buarque e Wilson Simonal chegaram ao Largo São Francisco em um carro da Record, mas seus fãs estavam tão incontroláveis que eles voltaram para o automóvel, fecharam as portas e seguiram direto para o Paramount antes que a Brigadeiro fosse interditada. Como seriam os dois apresentadores da estreia, não podiam se atrasar. “Se não fizéssemos isso, não chegaríamos vivos”, disse Chico a um repórter do jornal O Estado de S.Paulo.
Os artistas entraram juntos com o público por volta das 21h. O fã que conseguia vencer o caos recebia uma bandeirinha do Brasil e tomava seu lugar. Depois de cantarem 26 músicas, todos os intérpretes, orientados pela direção do programa, finalizaram entoando juntos uma espécie de hino enquanto a plateia brandia suas bandeiras.
E o que os artistas cantaram no País do general Costa “AI-5” Silva? “Moçada querida / cantar é a pedida / cantando a canção / da pátria querida / cantando o que é nosso / com o coração.” A MPB das origens pode ter sido ingênua e um tanto arrogante. Mas passeata contra guitarra elétrica, mesmo, nunca existiu.