Fragmentos de textos e imagens catadas nesta tela, capturadas desta web, varridas de jornais, revistas, livros, sons, filtradas pelos olhos e ouvidos e escorrendo pelos dedos para serem derramadas sobre as teclas... e viverem eterna e instanta neamente num logradouro digital.
Desagua douro de pensa mentos.
domingo, abril 20, 2025
Morre Cristina Buarque, pescadora de pérolas do samba e cantora de nome feito sem usar fama de ‘irmã do Chico’
MAURO FERREIRA
Se Cristina Buarque não tivesse sido uma cantora avessa aos holofotes, como a caracterizou o filho Zeca Ferreira em rede social ao comunicar a morte da mãe na manhã de hoje, talvez a artista tivesse ficado ressentida com o fato de Cauby Peixoto (1931 – 2016) ter se apropriado de Bastidores, a canção de 1980 que o irmão de Cristina, um certo Chico Buarque, compusera para ela.
Contudo, Maria Christina Buarque de Hollanda (23 de dezembro de 1950 –
20 de abril de 2025) jamais se importou com o estouro de Cauby. Preferia
o coro e a discrição das vocalistas ao protagonismo das cantoras
estelares.
Mas, sim, Cristina Buarque foi uma cantora e, para quem entende que a
grandeza do canto independente do tamanho da voz, ela foi uma grande
cantora que também fica imortalizada como hábil pescadora de pérolas da
música brasileira, em especial do samba.
É essa a imagem que fica da artista na manhã deste domingo de Páscoa
quando começa a se espalhar nas redes sociais e na imprensa a notícia da
morte de Cristina Buarque, aos 74 anos, em decorrência de complicações
de um câncer de mama que vinha tratando há tempos.
Cantora de origem paulistana e criação carioca que viveu os últimos
anos em Paquetá (RJ), onde comandava afamada roda de samba, a irmã de
Chico Buarque entrou em cena em 1967 – se apresentando somente como
Cristina – como convidada do compositor paulista Paulo Vanzolini (1924 –
2013) no álbum Onze sambas e uma capoeira (1967), dando voz ao samba Chorava no meio da rua, de Vanzolini.
No embalo, Cristina dividiu com Chico Buarque a interpretação do samba-canção Sem fantasia
(1968), no terceiro álbum do cantor. Daí em diante, a cantora trilhou o
próprio caminho sem jamais se aproveitar do prestígio e da fama do
irmão. E a trilha seguida por Cristina foi o samba dos bambas da velha
guarda.
Já no primeiro álbum, Cristina,
lançado em 1974, a cantora deu voz a sambas de Cartola (1908 – 1980),
Manacéa (1921 – 1995), Noel Rosa (1910 – 1937), Ismael Silva (1905 –
1978) e Ivone Lara (1922 – 2018), entre outros desbravadores do
terreirão do samba.
Foi pela voz pequena, devotada e respeitada de Cristina que, no disco de 1974, o Brasil realmente conheceu o samba Quantas lágrimas (1970), obra-prima do compositor Manacéa, também autor do samba Sempre teu amor (1963), revivido por Cristina na abertura do segundo álbum da artista, Prato e faca, gravado com arranjos do pianista José Briamonte e editado em 1976.
Farol para cantoras como Marisa Monte e Mônica Salmaso, a discografia
de Cristina Buarque sempre guardou joias do baú do samba. Foi no álbum Prato e faca, por exemplo, que Marisa Monte conheceu Esta melodia (Bubu da Portela e Jamelão, 1959), samba ao qual daria projeção ao regravá-lo no disco Verde, anil, amarelo, cor-de-rosa e carvão (1994), lançado por Marisa 20 anos após o LP de Cristina.
A coerência da discografia referencial de Cristina Buarque ficou atestada em em álbuns posteriores como Arrebém (1978), Vejo amanhecer (1980), Cristina (1981) e Resgate (1994). A obra da cantora inclui álbuns em tributos aos compositores Wilson Baptista (1913 – 1968) e Candeia (1935 – 1978).
A partir de 1995, ano em que gravou com Henrique Cazes um disco com
músicas de Noel Rosa, Cristina incorporou o famoso sobrenome Buarque à
identidade artística, ciente de que todo mundo já sabia que ela nunca se
beneficiou do parentesco próximo com Chico.
Para os bambas do samba, Maria Christina Buarque de Hollanda sempre foi
grande nome da música brasileira pela devoção, respeito e reverência
com que abordou o repertório da velha guarda.
GLOBO
Cristina Buarque (à direita) com Mart'nália em 2011 — Foto: Reprodução / Blog do escritor Rodrigo Alzuguir