Alento para os que leem
De novo Chico Buarque a controverso García Márquez, de Edouard Louis a César Aira, os destaques literários.
Por Cadão Volpato, para o Valor, de Nova York
O número de pessoas que leem livros
pode ter diminuido no Brasil( e os
números, de fato, assustan1 nu1na primeira
leitura), mas felizmente esses
objetos, os livros, continuam ocupando
as livrarias e - vá lá - os a1111azéns
da Amazon. E dentro dessa profusão
de lançamentos, que nem mesmo a
pandemia conseguiu estancar com toda
força, os bons livros continuan1
aparecendo con10 um alento. Este ano
não foi diferente: 2024 trouxe obras
de ficção e não ficção capazes de refletir
con1 talento a época tão conturbada
en1 que viven10s.
Mesmo um tremendo escritor como
Gabriel García Márquez, cuja obra já parecia
ter recebido un1 ponto final (ele
morreu em 2014 ), acabou ganhando
uma sobrevida polêmica com um romance
engavetado por ele mesmo e
agora ressuscitado pelos herdeiros.
Antes de apagar co1n a demência
que o levara para a sombra nos últimos
anos de vicia, García Márquez deixou
escrita essa novela sobre u1na 1nulher
de sobrenome Bach, que cultiva o hábito
deviajartodo ano, sempre no mês
de agosto, para uma ilha caribenha, a
fi1n de colocar u1na flor no tún1ulo da
mãe. Ano após ano, na base da repetição,
ela acaba entrando numa história
de amor que se repetirá, assim como os
outros gestos, ano após ano.
Os críticos não gostaram n1uito,
nem do romance, nem da atitude dos
herdeiros, mas o fato é que "Em agosto
nos ven1os" (Recorei) traz u1n bon1 bocado
do talento do autor para a fabula çao -
e isso nao e pouco, num ano em
que andamos precisando de algu1n lugar
para nos esconder durante algumas
horas, só para não sucumbir aos
desastres que anelaram nos assolando.
García Márquez nunca chancelou livros
1nedíocres, e sua obra-prin1a,
"Cem anos de solidão", acaba de ser
transformada em série, numa adaptação
que se julgava quase ünpossível.
Então n1erece ficar na roda de leituras.
Tivemos também um novo Chico
Buarque, "Bambino a Roma" (Companhia
das Letras). Chega a ser irritante a
capacidade que Chico tem de fazer coisas
boas, e esta pequena memória carregada
de ficção sobre a época em que os
Buarque de Holanda morara1n na capital
da Itália é feita do hun1or e do senso
de observação de um Chico criança que
se diverte com tudo e tudo vê.
E se for para ficar na graça ela literatura,
2024 foi u1n ano que trouxe para
os brasileiros os livrinhos engraçados
e surpreendentes cio argentino
César Aira, cuja elegante caixinha
con1 os quatro volun1es é u1na atração
difícil de ser ignorada. Aira escreve
sem parar e parece não se repetir
nunca, sempre com estilo.
U1n dos livros, "O vestido rosa", exibe
uma pegada de Guimarães Rosa em
seu célebre conto "O recado do morro".
Aira homenageia o brasileiro co1n
u1na história de obsessão fincada nos
Pampas. Precisa ser lido, nem que seja
como porta ele entrada para o seu estranho
n1undo, ele que é un1 autor
muito vivo, sempre cotado nas bolsas
de aposta do Prêmio Nobel (Coleção
César Aira, com "A prova", "Atos de car1.
c 1 a d e" , "O Co ngresso e1 e L.i teratura " e
"O vestido rosa", da editora Fósforo).
Em matéria ele Nobel, a leitura do
ano é "Vicias de 1neninas e 1nulheres",
de Alice Munro (Globo Livros - Biblioteca
Azul), a história do amadurecimento
de uma garota do Canadá rural
nos anos 1940. É o único romance de
Munro, n1ais conhecida por seus contos,
e foi publicado em 1971.
A virtude do livro é a forma como se
revela toda a beleza e os desastres de se
tornar 1ntdher no fi1n do n1undo e ntun
tempo absolutamente hostil. Alice
Munro morreu neste ano, e o Prêmio
Nobel foi ofuscado pelas revelações da
filha, que sofrera abuso sexual do padrasto
e no entanto fora acusada de
mentir pela própria mãe. Elas nunca se
reconciliara1n. "Vidas de 1neninas e mulheres",
no entanto, continua en1 pé.
Em "Faca: Reflexões sobre um atentado"
(Companhia das Letras), Salman
Rushdie ressurgiu do reino dos quase
mortos para ru1ninar sobre a tentativa
de homicídio que sofrera em 2022,
quando um cidadão motivado pela
mesma sentença expedida contra o esc1itor
pelo ai.atolá I<homeini, em função
dos "Versos satânicos", atacou o escritor
à faca no que seria uma simples palestra
sobre a liberdade arôstica e1n uma instituição
próxin1a de Nova York.
Rushdie vivera por mais de 30 anos
à sombra da ameaça elo ai.atolá. Pas-
sado o golpe, com seus traumas e sequelas,
ele ressurgiu com um testen1unho
pessoal que revela não só os
detalhes do crüne, os trabalhos
exaustivos de reabilitação, os danos
familiares, a solidariedade cios amigos
e colegas escritores, 1nas tan1bén1
o inevitável humor ácido e un1a certa
autodepreciação que não seriam estranhos
aos melhores autores britâni-
cos. E n1arcada1nente tun livro sobre
o ódio e a redenção possível.
Redenção, humor e autodepreciação
convergem luminosamente na
história de un1a das figuras n1ais conhecidas
do nosso ten1po, o ator AI Pacino.
Em "Sonny Boy: Autobiografia"
(Rocco ), Pacino desliza com verve e sabedoria
n1alandra pelos seus anos de
formação e tambén1 pelos ten1pos de
glória, que nem sempre foram tão g loriosos
assim, incluindo bancarrotas
n1e1noráveis e vícios ap1isionantes.
Não faltam as melhores histórias sobre
os clássicos dos quais ele foi protagonista:
os três capítulos de "O Poderoso
Chefão", "Un1 Dia de Cão", "Serpico" e
"Scarfa ce", só para ficar nos mais conhecidos.
Mas ainda há o teatro de vanguarda
e a vida no Bronx dos garotos encrenqueiros
dos quais ele era figura de proa.
Dois livros de autores brasileiros
quase desconhecidos merecem uma
leitura atenta, pela sensibilidade e
1naturiclade ela escrita. "Ressuscitar
mamutes", de Silvana Tavano (Autêntica
Contemporânea), é sobre o luto e
tan1bé1n sobre uin personagem não
1nttito con1um na literatura - a mãe.
Num país de mulheres que batalham
sozinhas na sombra, um livro como
esse faz tuna bela diferença. E "Ressuscitar
n1amutes" ainda fala ele ciência.
Já "Ojiichan", de Oskar Nakasato
(Fósforo). expõe a velhice do ponto de
vista de u1n descendente de japoneses,
personage1n que tan1bén1 não costuma
aparecer na literatura brasileira.
Nakasato havia sido premiado pelo
seu prin1eiro romance, "Nihonjin", e
revela um grande talento na extren1a
simplicidade com que alinha uma
sentença depois da outra.
Por fin1, tuna leitura incontornável
de 2024 foi "Mudar: Método" (Todavia,
com tradução impecável de Marília
Scalzo ), escrito pelo francês Édouard
Louis, hipercultuado na últüna Flip, a
Festa literária de Paraty.
Édouard Louis é dono de uma voz única,
que fala sem papas na língua ( e ainda
assin1 co1n literatura) sobre o a1nadurecimento
de seu alter ego, Eddy Bellegueule,
que foge de uma vida de pobreza
opressiva e preconceito homofóbico da
classe operária para constntir a ca1reira
de escritor, relatando essa trajetória con1
uma crueza raramente vista.
Assim como os outros livros destacados
neste ano, "Mudar: Método" é n1uito
ben1 escrito e relevante. Que n1ais pode
querer um leitor num país que ainda,
miseravelmente, lê tão pouco? ■