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  • O BRASIL EH O QUE ME ENVENENA MAS EH O QUE ME CURA (LUIZ ANTONIO SIMAS)

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    domingo, dezembro 29, 2024

    Alento para os que leem

     

     


      De novo Chico Buarque a controverso García Márquez, de Edouard Louis a César Aira, os destaques literários. 

    Por Cadão Volpato, para o Valor, de Nova York

     O número de pessoas que leem livros
    pode ter diminuido no Brasil( e os
    números, de fato, assustan1 nu1na primeira
    leitura), mas felizmente esses
    objetos, os livros, continuam ocupando
    as livrarias e - vá lá - os a1111azéns
    da Amazon. E dentro dessa profusão
    de lançamentos, que nem mesmo a
    pandemia conseguiu estancar com toda
    força, os bons livros continuan1
    aparecendo con10 um alento. Este ano
    não foi diferente: 2024 trouxe obras
    de ficção e não ficção capazes de refletir
    con1 talento a época tão conturbada
    en1 que viven10s.


    Mesmo um tremendo escritor como
    Gabriel García Márquez, cuja obra já parecia
    ter recebido un1 ponto final (ele
    morreu em 2014 ), acabou ganhando
    uma sobrevida polêmica com um romance
    engavetado por ele mesmo e
    agora ressuscitado pelos herdeiros.


    Antes de apagar co1n a demência
    que o levara para a sombra nos últimos
    anos de vicia, García Márquez deixou
    escrita essa novela sobre u1na 1nulher
    de sobrenome Bach, que cultiva o hábito
    deviajartodo ano, sempre no mês
    de agosto, para uma ilha caribenha, a
    fi1n de colocar u1na flor no tún1ulo da
    mãe. Ano após ano, na base da repetição,
    ela acaba entrando numa história
    de amor que se repetirá, assim como os
    outros gestos, ano após ano.


    Os críticos não gostaram n1uito,
    nem do romance, nem da atitude dos
    herdeiros, mas o fato é que "Em agosto
    nos ven1os" (Recorei) traz u1n bon1 bocado
    do talento do autor para a fabula çao -

     e isso nao e pouco, num ano em
    que andamos precisando de algu1n lugar
    para nos esconder durante algumas
    horas, só para não sucumbir aos
    desastres que anelaram nos assolando.
    García Márquez nunca chancelou livros
    1nedíocres, e sua obra-prin1a,
    "Cem anos de solidão", acaba de ser
    transformada em série, numa adaptação
    que se julgava quase ünpossível.
    Então n1erece ficar na roda de leituras.


    Tivemos também um novo Chico
    Buarque, "Bambino a Roma" (Companhia
    das Letras). Chega a ser irritante a
    capacidade que Chico tem de fazer coisas
    boas, e esta pequena memória carregada
    de ficção sobre a época em que os
    Buarque de Holanda morara1n na capital
    da Itália é feita do hun1or e do senso
    de observação de um Chico criança que
    se diverte com tudo e tudo vê.


    E se for para ficar na graça ela literatura,
    2024 foi u1n ano que trouxe para
    os brasileiros os livrinhos engraçados
    e surpreendentes cio argentino
    César Aira, cuja elegante caixinha
    con1 os quatro volun1es é u1na atração
    difícil de ser ignorada. Aira escreve
    sem parar e parece não se repetir
    nunca, sempre com estilo.


    U1n dos livros, "O vestido rosa", exibe
    uma pegada de Guimarães Rosa em
    seu célebre conto "O recado do morro".
    Aira homenageia o brasileiro co1n
    u1na história de obsessão fincada nos
    Pampas. Precisa ser lido, nem que seja
    como porta ele entrada para o seu estranho 

    n1undo, ele que é un1 autor
    muito vivo, sempre cotado nas bolsas
    de aposta do Prêmio Nobel (Coleção
    César Aira, com "A prova", "Atos de car1.
    c 1 a d e" , "O Co ngresso e1 e L.i teratura " e
    "O vestido rosa", da editora Fósforo).


    Em matéria ele Nobel, a leitura do
    ano é "Vicias de 1neninas e 1nulheres",
    de Alice Munro (Globo Livros - Biblioteca
    Azul), a história do amadurecimento
    de uma garota do Canadá rural
    nos anos 1940. É o único romance de
    Munro, n1ais conhecida por seus contos,
    e foi publicado em 1971.


    A virtude do livro é a forma como se
    revela toda a beleza e os desastres de se
    tornar 1ntdher no fi1n do n1undo e ntun
    tempo absolutamente hostil. Alice
    Munro morreu neste ano, e o Prêmio
    Nobel foi ofuscado pelas revelações da
    filha, que sofrera abuso sexual do padrasto
    e no entanto fora acusada de
    mentir pela própria mãe. Elas nunca se
    reconciliara1n. "Vidas de 1neninas e mulheres",
    no entanto, continua en1 pé.


    Em "Faca: Reflexões sobre um atentado"
    (Companhia das Letras), Salman
    Rushdie ressurgiu do reino dos quase
    mortos para ru1ninar sobre a tentativa
    de homicídio que sofrera em 2022,
    quando um cidadão motivado pela
    mesma sentença expedida contra o esc1itor
    pelo ai.atolá I<homeini, em função
    dos "Versos satânicos", atacou o escritor
    à faca no que seria uma simples palestra
    sobre a liberdade arôstica e1n uma instituição
    próxin1a de Nova York.


    Rushdie vivera por mais de 30 anos
    à sombra da ameaça elo ai.atolá. Pas-

    sado o golpe, com seus traumas e sequelas,
    ele ressurgiu com um testen1unho
    pessoal que revela não só os
    detalhes do crüne, os trabalhos
    exaustivos de reabilitação, os danos
    familiares, a solidariedade cios amigos
    e colegas escritores, 1nas tan1bén1
    o inevitável humor ácido e un1a certa
    autodepreciação que não seriam estranhos
    aos melhores autores britâni-
    cos. E n1arcada1nente tun livro sobre
    o ódio e a redenção possível.


    Redenção, humor e autodepreciação
    convergem luminosamente na
    história de un1a das figuras n1ais conhecidas
    do nosso ten1po, o ator AI Pacino.

    Em "Sonny Boy: Autobiografia"
    (Rocco ), Pacino desliza com verve e sabedoria
    n1alandra pelos seus anos de
    formação e tambén1 pelos ten1pos de
    glória, que nem sempre foram tão g loriosos
    assim, incluindo bancarrotas
    n1e1noráveis e vícios ap1isionantes.

    Não faltam as melhores histórias sobre
    os clássicos dos quais ele foi protagonista:
    os três capítulos de "O Poderoso

    Chefão", "Un1 Dia de Cão", "Serpico" e
    "Scarfa ce", só para ficar nos mais conhecidos.
    Mas ainda há o teatro de vanguarda
    e a vida no Bronx dos garotos encrenqueiros
    dos quais ele era figura de proa.


    Dois livros de autores brasileiros
    quase desconhecidos merecem uma
    leitura atenta, pela sensibilidade e
    1naturiclade ela escrita. "Ressuscitar
    mamutes", de Silvana Tavano (Autêntica
    Contemporânea), é sobre o luto e
    tan1bé1n sobre uin personagem não
    1nttito con1um na literatura - a mãe.
    Num país de mulheres que batalham
    sozinhas na sombra, um livro como
    esse faz tuna bela diferença. E "Ressuscitar
    n1amutes" ainda fala ele ciência.


    Já "Ojiichan", de Oskar Nakasato
    (Fósforo). expõe a velhice do ponto de
    vista de u1n descendente de japoneses,
    personage1n que tan1bén1 não costuma
    aparecer na literatura brasileira.
    Nakasato havia sido premiado pelo
    seu prin1eiro romance, "Nihonjin", e
    revela um grande talento na extren1a
    simplicidade com que alinha uma
    sentença depois da outra.


    Por fin1, tuna leitura incontornável
    de 2024 foi "Mudar: Método" (Todavia,
    com tradução impecável de Marília
    Scalzo ), escrito pelo francês Édouard
    Louis, hipercultuado na últüna Flip, a
    Festa literária de Paraty.


    Édouard Louis é dono de uma voz única,
    que fala sem papas na língua ( e ainda
    assin1 co1n literatura) sobre o a1nadurecimento
    de seu alter ego, Eddy Bellegueule,
    que foge de uma vida de pobreza
    opressiva e preconceito homofóbico da
    classe operária para constntir a ca1reira
    de escritor, relatando essa trajetória con1
    uma crueza raramente vista.


    Assim como os outros livros destacados
    neste ano, "Mudar: Método" é n1uito
    ben1 escrito e relevante. Que n1ais pode
    querer um leitor num país que ainda,
    miseravelmente, lê tão pouco? ■

     

     

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