Artistas e atletas, divas e divinas
A rainha, o peixe e a opulenta sobem ao pódio da obra de arte total
Mario Sergio Conti
Há uma década, no Festival de Avignon, Jolly juntou numa montagem inconcebível as três peças de Shakespeare sobre o rei Henrique. Uns 150 personagens declamaram 10 mil versos durante 18 horas de espetáculo. Sem saber, o diretor treinava para as Olimpíadas.
Lady Gaga: Tem seus encantos e caprichou no sotaque para dizer "bonjour, Paris". Mas nem de longe esteve à altura da festança. Foi bom vê-la porque não é todo dia que uma divindade ianque se prosta diante da empáfia francesa.
Maria Antonieta: Reza a lenda que a rainha tocava no cravo a melodia que deu origem a "Ça Ira", canção-símbolo da Revolução Francesa. Foi enjaulada na Conciergerie, à beira do Sena, e seguiu dali, de carroça, para a guilhotina, enquanto o povoléu apupava: "puta austríaca!".
A Conciergerie espirrava sangue quando Maria Antonieta reapareceu com a cabeça debaixo do braço, como manda o humor negro do grand guignol. Tocada à toda por uma banda heavy metal, "Ça Ira" curto-circuitou o Sena com os versos burlescos de 1789, endereçados a 2024:
Agora vai, agora vai!
A cabeça de gente fina
Da guilhotina agora cai!"
Léon Marchand: A natação engendra o panteão das lendas: Johnny Weissmuller, Mark Spitz, Michael Phelps e, agora, Léon Marchand. Para o Le Monde, a natureza explica sua hipervelocidade: com ombros e quadris estreitos, o longilíneo desliza como peixe. A cultura aquática também elucida a destreza: a mãe, o pai, um tio e seu irmão foram nadadores olímpicos.
Aya Nakamura: Vinda do Mali, é a mulher da hora na França, a cantora mais opulenta e popular. De dourado, a ultrapoderosa levou a sisuda Guarda Republicana a requebrar com malemolência. A extrema direita fez campanha contra ela durante meses, e foi sapateada pela performance.
Willian Lima: O judoca deu um belo ippon, levou prata e, buááá, chorou feito um bezerro desmamado. Ganhando ou perdendo, os brasileiros costumam esguichar lágrimas. Têm um bom motivo (são brasileiros), mas não deviam exagerar. Poderiam se espelhar em Rebeca Andrade e Flavia Saraiva; uma ganhou, a outra perdeu; ambas gargalharam.
Axelle Saint-Cirel: Seus pais nasceram em Guadalupe e ela passou a infância na Malásia. Vestida de gala com a bandeira tricolor, a meio-soprano cantou a "A Marselhesa" no topo do Grand Palais. Teve a bem-sucedida ousadia de aposentar o arranjo do hino feito por Berlioz. Em matéria de símbolos, as ex-colônias ganharam medalha de ouro.
Argelinos: Mas nem tudo é símbolo. Há 61 anos, a polícia parisiense matou cem imigrantes numa manifestação pela independência da Argélia. A delegação argelina não topou o oba-oba e jogou rosas vermelhas no lugar do Sena onde seus compatriotas foram afogados. O passado não passou; imperialista, a França intervém "mano militari" na África até hoje.
Leni Riefenstahl: Vale a pena rever "Olympia", o filme dirigido pela cineasta nazista sobre os Jogos de 1936, em Berlim. Além de uma ode a Hitler, que aparece torcendo feito doido, a obra homoerótica antecipa os cortes e cenas subaquáticas ainda em vigor. Ao se iniciar com imagens de ruínas e escombros, "Olympia" estetiza a destruição que viria.
Macron: A República foi esculachada por um aspirante a Bonaparte, o presidente-banqueiro que do Corso tem só a estatura. Enquadrado pelo protocolo, levou uma tunda na vaidade napoleônica: só pôde dizer que a Olimpíada começava.
Yves Saint Laurent: O costureiro vestiu as 300 modelos que desfilaram na abertura da Copa do Mundo de 1998. O conglomerado que comprou sua maison pagou os tubos para inserir um grotesco anúncio de malas no cortejo olímpico. Ninguém está a salvo dos malas da mercantilização.
Céline Dion: Com um vestido branco de broderie, ornado com pérolas e paetês, a cantora transformou o primeiro andar da Torre Eiffel num palco planetário. Ao soltar a voz em "Hymne a l’Amour", de Édith Piaf, Céline Dion provou que uma vez diva, sempre diva.
FOLHA
ILUSTRAÇÃO: BRUNA BARROS