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    sexta-feira, junho 14, 2024

    Mitos, mentiras e até verdades egocêntricas nas memórias de Herzog

     

     No centro da imagem, desenhado em cores, o retrato de um homem de frente, usando vestes de general romano. Balões de fala e pensamento saem para direita e esquerda a partir do rosto do homem. Ao fundo há um céu azul e prado verde.

    Mario Sergio Conti

     

    Werner Herzog foi convidado por uma curadora, em 2014, para exibir algo da sua autoria na Bienal. Recusou-se porque não se considerava artista, palavra que, conforme explicou, hoje se aplica "a cantores de sucesso e artistas de circo".

    Já que não era artista, o que fazia na vida?, ela perguntou. "Sou um soldado", respondeu, e desligou o telefone. No dia seguinte, Herzog ligou de volta e aceitou o convite.

    Noutra vez, foi chamado a dirigir uma ópera. Não quis, pelo bom motivo de não saber ler partituras. Mas, ao visitar o teatro, em Bolonha, topou encená-la. Dirigiu 20 óperas, de Mozart a Wagner, e até "O Guarani", de Carlos Gomes, apesar de não a considerar "música de verdade".

    Num terceiro trecho de "Cada um por si e Deus contra Todos: Memórias", da Todavia, ele se compara a um general do Império Romano. Um líder que, na véspera da batalha, dormia no chão com os legionários e saía à frente deles para, de gládio na mão, despedaçar bárbaros.

    Artista, diretor de ópera ou general?

    Herzog é cineasta. Ele lista no fim de seu livro os 66 filmes que fez em meio século. A média anual dos que dirigiu é pouco maior do que os que vê –três ao ano. Assiste a eles de lado, com uma pessoa à direita e a cadeira à esquerda vazia. É cada um com sua mania e Deus contra todos.

    Não entram na sua lista os 23 filmes nos quais atuou. Num deles, dirigido por Les Blank, come o próprio sapato. Noutro, interpreta a si mesmo em "Tokyo Ga", de Wim Wenders. São filmes cabeça, de arte, já porque despreza a cultura pop; considera os dois termos incompatíveis.

    Apesar da ojeriza, foi ator em "Os Simpsons", num filme da série "Guerra nas Estrelas" e em "Jack Reacher", no qual contracenou com Tom Cruise. Embasbacou-se com o tamanho do estafe do superastro e perguntou-lhe se os seus cachorros tinham psiquiatra. É a única ironia no livro. Herzog não é conhecido pelo bom humor.

    Ele é famoso, isso sim, pelo excesso de excentricidades, o que torna impossível reduzi-lo a uma profissão, e sua obra a uma única característica. Por isso suas autodefinições não são embromações, têm tudo a ver.

    "Fitzcarraldo" é uma ópera ensandecida com Caruso na trilha sonora. "Aguirre, a Cólera dos Deuses", uma guerra colonial na Amazônia comandada por um general louco. "Fata Morgana", o poema visual de um artista.

    Talvez o melhor seja definir Herzog como um aventureiro, um misto de Quixote e Ponce de León, um europeu que se lança por terras nunca dantes percorridas em busca de Eldorado e se perde na África real e na selva de si mesmo. Como resumiu Pauline Kael, é um Tarzan metafísico.

    O pendor belicoso das epopeias de Herzog permeia suas memórias. Ele conta que, como o mocinho de um filme de ação, sempre escapa por um triz. Quase é fuzilado por guerrilheiros do Sendero Luminoso. Deixa de tomar um avião onde tinha lugar e ele cai pouco depois.

    Uma avalanche de neve o soterra por três dias. Pendura-se num helicóptero e seus dedos congelam; está fadado a amputá-los, mas um amigo urina neles e consegue preservá-los. Quebra o braço, a perna, a cabeça. "Cada um por si e Deus contra Todos" é um delírio de acidentes.

    Vive tão na corda bamba que Dwight Garner avisa, na primeira frase de sua resenha no New York Times: "Não acredito numa só palavra do novo livro do cineasta". Com efeito, não dá para crer que, só de olhar, Herzog possa, como diz, saber se uma pessoa sabe ou não ordenhar vacas.

    O pé atrás em relação ao que conta não perturba o cineasta. Para ele, a verdade não precisa coincidir com os fatos. Mesmo em seus documentários ele insere invencionices. Para se explicar, cita Gide: "Altero os fatos de tal modo que eles se parecem mais com a verdade do que com a realidade".

    Vá lá que seja: é um modo de ver o mundo. O chato é que, progressivamente, e sobretudo nos seus últimos filmes, as bizarrices são tantas, e tão forçadas, que não geram alumbramentos.

    Compare-se, por exemplo, a cena de "Aguirre" na qual o explorador, alucinado, vaga numa jangada lotada de macaquinhos, com a de Herzog se debulhando em lágrimas em "O Homem-Urso". A primeira é poesia, fala dos delírios do colonialismo; a outra, sensacionalismo barato e sem propósito.

    Em "Cada um por si e Deus contra Todos" ocorre algo parecido. O começo do livro, sobretudo os capítulos sobre a infância, são briosos, reveladores. Nos últimos, os mitos e mentiras se acumularam de tal modo que não surpreendem; entediam. Resta apenas a automistificação ególatra.

    FOLHA  

    ILUSTRAÇÃO BRUNA BARROS

     

     

     

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