'Bebê Rena' leva o espectador ao inferno real de seu protagonista
Uma coisa que Richard Gadd disse não querer fazer em "Bebê Rena", sua história pessoal como vítima de abusos transportada para palcos e telas, era recair no maniqueísmo comum a relatos de predação sexual. Afinal, nem sempre é um monstro quem faz coisas ruins. Na verdade, quanto mais humano o vilão, mais assustador ele ou ela é.
Optou, assim, por retratar entre luzes e sombras tanto seu alter ego, um comediante fracassado que busca uma escada para a fama, como seus algozes, uma "stalker" que passa a interferir em todos os aspectos de sua vida e um mentor que lhe inflige enorme trauma físico e emocional (dizer mais aqui traria spoilers).
Conseguiu, tanto na peça de 2019 quanto na minissérie que estreou neste mês na Netflix, uma bomba dramática que reverbera seus choques por dias no espectador.
"Bebê Rena" trata de medo, culpa, angústia, autoestima, doença mental e, sobretudo, da solidão das vítimas, que estão no meio de nós tentando fazer seu fardo invisível.
O enredo já seria notável por sua mudança de perspectiva —o crime é comum, mas homens vitimizados, além de serem em muito menor número, raramente tornam público seu tormento. Reportagem da Folha apontou que, desde que o crime de "stalking" entrou no Código Penal brasileiro, há três anos, 169 mil mulheres fizeram denúncias, ante 28 mil homens.
Mas Gadd foi mais fundo. Criador, roteirista e protagonista da peça (um sucesso no festival de artes de Edimburgo em 2019) e da minissérie (que multiplica o feito para os milhões de espectadores da plataforma de streaming), ele de fato viveu o tormento do personagem Danny Dunn.
De 2015 a 2017, recebeu 1.071 emails, 350 horas de mensagens de voz, 790 mensagens em redes sociais e 106 páginas de cartas de uma mulher que passou a persegui-lo após ele atendê-la com gentileza no pub londrino onde trabalhava como barman.
"Martha", como ele nomeou a personagem interpretada magistralmente por Jessica Gunning, é uma solitária muito obesa, que, aos 43 anos, vive em um muquifo e perdeu a carreira em um escritório de advocacia após perseguir o chefe. Foi condenada, cumpriu pena e reincidiu.
Martha se encanta com Donny, a quem atribui diversos apelidos, inclusive o "bebê rena" do título, passa a fantasiar uma relação e a remeter emails de alto teor sexual.
Vai diuturnamente ao pub, onde passa horas falando com seu alvo e consome um refrigerante. Toda essa atenção que supre o vazio da vida da stalker supre também o do comediante, que começa a se alimentar desses elogios e desejos até se tornar obcecado por sua perseguidora.
Histórias de stalkers são sempre aterrorizantes (estão aí "Atração Fatal" e "Amor para Sempre"). E Gadd/Dunn conta a sua de maneira brutalmente honesta. Embora seja firme em manter sua posição de alguém que foi vitimizado repetidamente, não se exime de narrar como desenvolveu uma codependência com seus abusadores.
A insegurança quanto à sua orientação sexual (expressa na forma como conduz seu namoro com Teri, uma mulher trans vivida pela excelente Nava Mau), a necessidade de aprovação e a dificuldade em seguir em frente um dia eclodem numa espécie de imolação pública durante uma apresentação.
Sua vulnerabilidade se torna tão palpável para espectadores quanto é para abusadores.
A forma como ele admite e se recrimina por ter se beneficiado dessa atenção é algo duríssimo de assistir, assim como é duríssimo vê-lo, consumido por seus medos e culpas, afastar as pessoas que lhe são caras, recusando-se a ver que elas também têm ou tiveram suas provações.
Apesar da empolgação do público e dos elogios da crítica, Gadd e a Netflix enfrentam agora um problema. O carimbo de "caso real" levou o público ávido por fofocas a investigar a identidade daqueles que atormentaram o artista no passado e a atirar suspeitas a esmo. Vem então uma inquietação perturbadora diante principal ambiguidade da série.
Não era isso que ele queria?
FOLHA