João Cândido é a face de heroísmo na história do povo negro
Tom Farias
Meu pai é do Brasil", me disse, há uns dois anos, Adalberto do Nascimento Cândido, filho de João Cândido, líder da revolta dos marinheiros, que já vai completando seus 114 anos.
Seu Candinho, como é conhecido, é a maior representação viva daquele que, através de sua luta e determinação, pôs fim a práticas de castigos corporais, situação trabalhista insalubre e pagamento de soldos vergonhosos à tripulação maruja na Marinha brasileira.
Aos olhos de hoje, e mesmo em novembro de 1910, era um feito de coragem encarar a Força Naval e o governo, na figura do marechal Hermes da Fonseca, então presidente da República.
João Cândido, marinheiro negro, botou abaixo mais de três séculos de abusos e violências contra militares de baixa patente, em sua maioria de negros, nos tanques de guerra do país.
Nunca quis revolta, como depôs nos inquéritos judiciais que precisou enfrentar e relatou no histórico "Depoimento para a Posteridade", prestado ao Museu da Imagem e do Som (MIS) na década de 1960.
Cândido recorreu a todos os meios possíveis para levar adiante a pauta de reivindicações dos seus companheiros, as quais jamais foram acolhidas e respeitadas pelo governo. Mesmo avesso às rebeliões, greves e revoltas, não teve outra alternativa após o colega de farda Marcelino Rodrigues de Menezes ter sido retalhado por 250 chibatadas, diante da marujada perfilada e reunida. Foi esse o estopim do grito de indignação retesado na garganta dos marinheiros fazia anos.
Passado mais de um século de sua luta, Cândido continua a ser perseguido pela Marinha e seus ditos oficiais. Não é cabível que isso ainda aconteça na contemporaneidade. Não é possível que uma única pessoa, como membro do oficialato, se insurja a ponto de enviar uma carta a congressistas, fazendo recomendações, a partir do seu ponto de vista e sua ideologia político-militar.
É preciso que se dê um basta para esse tipo de alegação.
O comandante Marcos Sampaio Olsen, atual almirante de esquadra, nascido em 1961, no Ceará, parece ter uns 200 anos de vida. E tem. O teor de sua carta à comissão da Câmara dos Deputados, além de ridículo e risível, é arraigado de parágrafos fraseados e termos rastaqueras do passado colonial –"opróbio", "abjetos", "deplorável".
Aliás, além de se expor à vergonha nacional, a Marinha brasileira teme ser tachada de racista. A palavra racismo na língua portuguesa dominante na caserna virou étimo de palavrão, de termo salutarmente não audível a determinados ouvidos privilegiados.
O Cândido dessa história, depois de liderar a revolta que parou o país, foi preso, torturado, banido da sua "amada Marinha", perseguido e discriminado, juntamente com sua família, até morrer, pobre e doente, em 1969, aos 89 anos.
Quanto a isso, nenhuma palavra da Marinha e de seus potentados quadros oficiais –que jamais o anistiaram de fato e direito.
Agora, a pergunta de milhões: o comandante Olsen está falando em nome de quem? Dele ou da Marinha? Qual é o seu lugar de fala em toda essa absurda narrativa?
A sociedade civil precisa entender.
Em ato que a história classificou de heroísmo —quando pôs em risco sua própria vida—, João Cândido liderou uma revolta que parou o Brasil e despertou a nação para uma secular situação na esquadra brasileira: os maus-tratos físicos, com fundo racista, resquício da escravidão e de afronta à lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888.
E escreveram, em seu manifesto: "Nós, marinheiros, cidadãos e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira".
Por conta disso, durante seis longos dias, João Cândido e seus companheiros de infortúnio confrontaram o poder estabelecido e obrigaram parlamentares, ministros, almirantado, comandantes e capitães de navios a abolirem a hedionda prática da chibata e a melhorarem as condições de bem-estar e trabalho do conjunto de marinheiros.
Ganharam o salvo-conduto, votado pelo Senado — mas perderam emprego e dignidade. Cândido ainda perdeu sua autonomia e liberdade —foi vigiado até mesmo na hora mais sagrada, a do seu sepultamento.
Portanto, a inscrição do seu nome no Livro de Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria configura-se como parte da justiça a que tem merecido direito —a família aguarda ainda a compensação financeira pelos anos de obscurantismo e humilhação.
Os brasileiros, os que defendem a democracia e prezam pela vida do outro, sabem que tudo isso é pouco, mas é necessário.
Nada vai eliminar da memória familiar dos Cândidos os anos de perda, sofrimento e de dor.
FOLHA