Lula acerta ao vetar atos em memória dos 60 anos do golpe? NÃO
No longa-metragem "Hoje" (Tata Amaral, 2011), Vera está de mudança para um apartamento em São Paulo, adquirido com os valores de uma indenização concedida pelo Estado brasileiro aos familiares de desaparecidos políticos da ditadura militar.
Apesar da grande expectativa de que a nova moradia e o reconhecimento tardio de sua viuvez fossem libertá-la da condição de suspensão imposta pelo desaparecimento, a protagonista é incomodada por diferentes incidentes aleatórios no imóvel: a torneira que vaza, a vizinha enxerida e a síndica autoritária —até que Luiz, seu marido e companheiro de luta armada, ressurge, numa alucinação que materializa o retorno do trauma recalcado. O reencontro é difícil, carregado de ressentimento. Entre o ir e vir dos carregadores, os intensos diálogos entre os dois vão se sucedendo até o clímax, quando Luiz pergunta quando foi que ela o deu por morto. Vera suspira, elabora e, ainda embargada, responde: "Hoje". A obra é uma das mais acuradas representações das feridas abertas por 1964 no Brasil. Está tudo ali: não se sabe exatamente o que aconteceu com o militante; ninguém foi responsabilizado pelo seu desaparecimento; e o Estado achou que poderia se redimir com uma reparação financeira.
A ditadura é o caso mais bem-acabado do que a historiografia tem chamado de "passado presente", simbolizado na ficção de "Hoje" pela presença de Luiz e na realidade pelos mais de 200 corpos ainda por encontrar no país. Recentemente, entretanto, Lula disse que 1964 é história e que não quer remoer o passado. Seu objetivo era preparar o terreno para a iminente notícia de que vetaria atos críticos dos ministérios em alusão ao 31 de março, que completa 60 anos neste domingo (31). Há quem diga que o presidente está certo e que não é o momento de melindrar os militares, já que muitos deles estão no olho do furacão por uma articulação golpista mais recente.
Faz sentido, mas o golpismo bolsonarista é um problema da Justiça, não do governo. Ao Executivo cabem outras competências. Uma delas é "incentivar iniciativas de preservação da memória histórica e de construção pública da verdade sobre períodos autoritários", conforme estabelecido no 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos, aprovado por decreto pelo próprio Lula. 1964 é justamente a mais recente linha que separa a civilização da barbárie. E é obrigação do Estado brasileiro, independentemente do governo de turno, mantê-la visível. O evidente risco de partidarização é razão para outra conversa.
A omissão do governo não é apenas simbólica, mas também prática. Ainda não há sinal de recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Apesar de se emocionar com as mães e avós da Praça de Maio, Lula 3 ainda não encontrou espaço na agenda para os brasileiros que continuam buscando os restos mortais dos seus familiares. Também no exterior, seus ministros disseram que os museus da memória de Argentina e Chile são exemplo e prometeram equipamento semelhante no Brasil. Ele já tem até nome: Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Só não tem data para abrir.
A desculpa do contexto também é conveniente; afinal, a conciliação com os militares é regra, não exceção nos governos Lula. Na boca de qualquer outro presidente, suas recorrentes declarações sobre o tema seriam facilmente qualificadas como negacionistas. E, ao contrário da expectativa, os esforços de apaziguamento com a caserna não dirimiram seu ímpeto intervencionista.
Além de belos museus sobre a ditadura, outra coisa que os argentinos e os chilenos têm em comum é a ausência de militares chantageando a democracia. Pode ser coincidência, claro. Mas, independentemente do argumento utilitarista, o Brasil tem o dever moral de exumar seu passado autoritário, que até lá será presente. Por mais indigesto que seja. Se a vida não imita a arte, neste caso deveria. Enquanto o Brasil não remói o passado, é o passado que vai remoendo-o.
FOLHA