30 DE MARÇO DE 1964
O Brasil não sabe que o Golpe de 64 começou um dia antes em Governador Valadares.
Valadares era quente. Ainda é um local de calor infernal, com o Ibituruna refletindo raios solares sobre o rio doce que corre em meio à cidade. Naquele tempo era quente em outros sentidos. Cidade recém-criada, com muitas ruas de terra, mais bicicletas que carros, e os carros disputando com os cavalos, na minha cabeça de menino não havia muita diferença entre a vida ali e os faroestes que via no Cine Ideal. Pessoas andavam armadas em público. Garoto, assisti a muitos tiroteios. Brigas de rua, bebedeiras, espancamentos. Uma manhã eu voltava da padaria e um sujeito, na minha frente, abriu a barriga de outro com peixeira. Sangue e intestinos pela calçada da Israel Pinheiro.
Toda essa tensão existia também – e maior – no campo. Valadares tinha nome de governador mas era uma cidade de xerifes. Latifundiários que dominavam a região. Com suas milícias de jagunços. Mas descendo a Rio-Bahia ou ou navegando pelo Rio Doce vinham os migrantes, retirantes, ex-candangos, pra tentar a vida na cidade nova que surgia de promessas, mica, serrarias, dinheiro fácil-farto. E haviam os agricultores querendo preservar suas terrinhas que viravam pastos. Os últimos Krenaques mendigavam nas ruas chorando a morte das matas. A configuração oligárquica enfrentava – e violentamente – novos tempos. A efervescência de todo aquele Brasil em ebulição fervia na chapa quente ao redor do Ibituruna.
O que resta de História e lembranças no país registra a saga das Ligas Camponesas organizadas por Francisco Julião no Nordeste como exemplo de conscientização e mobilização do povo na luta por terras e condições de vida. Quase nada se diz de organizações como o Sindicato de Camponeses no Vale do Rio Doce - incentivados inclusive por uma vinda do Julião em 1961 - que estavam mudando a vida dos trabalhadores rurais e dos imigrantes valadarenses.
De um lado, pistoleiros expulsando lavradores de suas terras. De outro, tentativas de invasões de terras abandonadas. Em 1964 esta luta iria chegar a resultados concretos com o anúncio da desapropriação da fazenda improdutiva da empresa Anglo. Enquanto os latifundiários em pânico reforçavam os armamentos e contratavam mais jagunços. E a Igreja Católica com a Liga Democrática Feminina promovia passeatas diárias contra o demônio da subversão. E o jornal Combate dando voz aos sufocados. Pela reforma agrária.
Eu tinha dez anos e não entendia a História assim. Para mim era como os filmes de cangaceiros que passavam no Pio XII. Nas historias e brincadeiras das crianças os personagens eram esses. O temido Capitão Pedro de chapéu, caçador de bandidos e comunistas. Meus heróis eram Lampião e Chicão. Francisco Raimundo, líder dos camponeses, era um sapateiro que virou pedra nas botas dos opressores. No folclore local tornou-se um possesso, comandando posseiros que invadiam tudo, saqueavam as casas, e ele tomava e dava aos pobres, robinhudi do Rio Doce. A molecada sussurava seu nome num misto de admiração e medo. As mães devotas chamavam: “Entra pra casa, menino, que o Chicão vai te pegar”.
Tudo isso atingiu seu ápice num comício marcado para 31 de março. A tal Fazenda do Ministério seria entregue para um assentamento de lavradores. Ato simbólico: criada para ser uma fazenda-modelo, com o ensino da agricultura, funcionou na verdade fornecendo subsídios aos latifundiários. Um dia antes as milícias dos coronelões acabaram com a festa. Destruiram a sede do sindicato, atirando em quem resistisse. Entre um morto e inúmeros feridos, Chicao conseguiu fugir antes de ser linchado. Tentaram empastelar a redação do Combate. Ocuparam as ruas da cidade. Trancados em casa, nós meninos não brincamos na praça de faroeste ou cangaço por aqueles dias.
Quando o Exército desceu de Minas para detonar o Golpe de 64 no Rio de Janeiro, Governador Valadares já tinha sido tomada por tropas conservadoras. Chicão, camponeses, reformas, sonhos, esperanças – e o próprio jornal Combate – tinham sido postos fora de combate. Capitão Pedro virou herói por ter moralizado a bandidagem na cidade que foi crescendo. Coronel Altino virou aeroporto. Valadarense virou sinônimo de quem deixa um lugar sem perspectivas buscando a vida no exterior. O Combate virou memória, como nas lembranças de uma criança que – já apaixonada pelo jornalismo – comprava o jornal escondido e se impressionava com as enormes manchetes em vermelho e com as lutas ali narradas.
Ricky Goodwin
(Aritgo para uma publicação em homenagem ao jornal COMBATE, periódico de esquerda na região do Rio Doce, Minas Gerais.)