O dilema de publicar postumamente obras que autores renegaram
O lançamento de um título inédito de Gabriel García Márquez que ele preferia ver destruído expõe novamente a discussão
“Este livro não presta. Tem de ser destruído.” Com essas palavras, Gabriel García Márquez (1927-2014) deixou claro o destino que desejava para a última obra ficcional que escreveu, Em Agosto Nos Vemos. Perfeccionista, ele não aprovou o resultado, apontando falhas estruturais e incongruências narrativas. Assim, o lançamento global do livro em 41 idiomas, na quarta-feira 6, quando Gabo completaria 97 anos, contraria francamente o desejo do Nobel colombiano. Logo na introdução, assinada por Rodrigo e Gonzalo García Bacha, filhos do autor, já há o mea culpa e a defesa da decisão tomada. Eles admitem que a publicação foi um “ato de traição”, mas mencionam a possibilidade de que “o declínio de suas faculdades mentais, que não permitiu a Gabo terminar o livro, também o impediu de perceber como ele estava bem-feito”.
Em agosto nos vemos – Gabriel García Márquez
Em conversa com VEJA, Gonzalo disse que ele e seu irmão não estão no “ramo de destruir livros”. E completou: “Pelo contrário, estamos no negócio de fazer produtos culturais”. Gonzalo é editor e Rodrigo, diretor de cinema. Há ainda questões legais (e financeiras) envolvidas. Todo o acervo de García Márquez — incluindo rascunhos, manuscritos originais e inéditos, cartas, fotos etc. — foi consignado à Universidade do Texas, em Austin. Gonzalo conta que a família optou pela instituição com o intuito de deixar o material livremente acessível e vivo. De fato, o trabalho que a universidade vem fazendo é notável: já digitalizou mais de 27 000 itens para consultas on-line em espanhol e inglês, e o acervo completo está disponível para pesquisas no local, gratuitamente.
O livro recém-publicado estava no acervo e vinha sendo lido por pesquisadores e aficionados do autor. “Faz dez anos que as pessoas estão lendo e começaram a aparecer algumas resenhas e críticas na internet”, diz Gonzalo. Com isso, os herdeiros lançaram o título para resguardar seus direitos. “Enquanto um livro não tem registro internacional, está mais exposto à possibilidade de vir à luz não oficialmente”, completa. Gonzalo garante que essa é a 11ª e última novela do autor. Não há mais nada em seu baú que seja publicável.
A decisão de publicar ou não obras inéditas de um autor morto é recorrente. Talvez o caso mais famoso seja do tcheco Franz Kafka (1883-1924). Antes de sua morte por tuberculose, ele pediu que o amigo Max Brod destruísse seus escritos. Caso Brod tivesse respeitado o pedido, a humanidade jamais leria obras como O Castelo e O Processo. Para Idalia Morejón Arnaiz, especialista em literatura hispano-americana da USP, a escolha é sempre complicada. “Há casos em que todo mundo ganha, como o de Kafka. Mas há casos em que só o mercado editorial ganha. Os autores acabam diminuídos por terem obras fracas publicadas em seu nome”, explica. Para ela, a opção deveria ser sempre estética. “Se algo é sabidamente ruim, por que publicar?”, provoca.
Outro caso famoso é o do chileno Roberto Bolaño. Pouco antes de morrer, em 2003 (ele teve falência hepática, agravada pelo consumo de drogas e álcool), deixou orientações bem específicas para a publicação póstuma de seus romances, pois sabia que a morte chamaria atenção para sua obra e queria garantir que seus familiares lucrassem com os livros. No entanto, não mencionou nenhuma palavra sobre poemas escritos na juventude, guardados em gavetas e postumamente editados. Provavelmente, ele sabia que sua poesia juvenil era muito aquém de seus romances.
Mais recentemente, tivemos no Brasil a publicação de um poema escrito por Graciliano Ramos, Os Filhos da Coruja. O feito só foi possível porque sua obra entrou em domínio público e os herdeiros perderam o controle sobre ela. Ainda em vida, Ramos pediu que os familiares jamais publicassem suas poesias. Seu neto, Ricardo Ramos Filho, classificou a edição como “uma sacanagem enorme”.
O novo livro de García Márquez, uma novela ligeira, certamente não é a melhor coisa que ele escreveu. Abundam construções e adjetivos que soam como se o autor estivesse parafraseando a si mesmo: “…o céu estava diáfano e cheio de estrelas, com uma lua solitária e triste”. Ainda assim, há méritos, sobretudo no intuito feminista, que pode satisfazer a geração atual. A protagonista, uma mulher de 46 anos que se casou virgem, busca aventuras sexuais fora do casamento. Mas a emancipação feminina que se anuncia é timidamente explorada. Faltam realismo e magia à história. Uma pena quando o autor é justamente o mestre do realismo mágico.
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