O passo que falta
Bernardo Mello Franco
A derrota de Jair Bolsonaro não representou o fim das ameaças à democracia no Brasil. O alerta é do Laut, o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo. O grupo de pesquisa foi criado em 2020, no início da pandemia. Este ano, lançou “O caminho da autocracia”, que debate as novas técnicas da extrema direita para alcançar o poder.
“O fato de Bolsonaro não ter conseguido se reeleger não significa que possamos respirar aliviados”, advertiu ontem a pesquisadora Marina Slhessarenko Barreto, em debate promovido pela revista Quatro Cinco Um durante a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. “O primeiro passo para proteger a democracia é não reeleger líderes autoritários. O segundo é responsabilizá-los”, afirmou.
“Existe uma anistia em curso. Não é como a de 1979, mas é uma anistia disfarçada”, disse o professor Conrado Hübner Mendes. Para ele, o país está demorando demais a identificar e punir os peixes grandes que financiaram e comandaram a engrenagem golpista. “Até aqui, a Justiça só tornou Bolsonaro inelegível. É muito pouco”, criticou.
Diretor do Laut e professor de Direito Constitucional da USP, Mendes citou a tradição brasileira de evitar punições a quem atenta contra as instituições. “A história do Brasil é cheia de pactos de pacificação que não são pacificadores”, disse. “Desde o 8 de janeiro, já passou tempo suficiente para ligarmos o sinal de alerta”, acrescentou.
O grupo de pesquisa criou uma metodologia para monitorar os avanços do autoritarismo. A cartilha inclui a centralização do poder nas mãos do Executivo, a violação da autonomia do Judiciário e o uso de técnicas de discurso para construir e estigmatizar inimigos.
O Laut também acompanha a articulação da extrema direita em redes transnacionais. Um exemplo recente foi a participação da família Bolsonaro na campanha de Javier Milei na Argentina.
Nos dois países, ocorreu o mesmo fenômeno: o conservadorismo moderado perdeu força, e seus eleitores passaram a apoiar líderes radicais. “Há muita discussão sobre a reconstrução da esquerda, mas a direita também precisa se reconstruir”, disse Mendes. “Há uma direita sequestrada, de joelhos, que se rendeu a projetos autoritários”, completou.
“O Brasil participou e continua a participar de uma onda global de erosão da democracia”, ressaltou o professor. Ele defendeu que é preciso proteger as universidades e a imprensa de tentativas de intimidação e censura. Mendes é um dos alvos dessa ofensiva. Responde a processos por criticar o ex-procurador-geral Augusto Aras e o ministro do STF Kassio Nunes Marques, ambos indicados por Bolsonaro.
“A eleição é feita num só dia. A democracia acontece em todos os outros”, lembrou Barreto, que é doutoranda em ciência política pela USP. “A democracia sempre será frágil. Se algum cientista político lhe disser o contrário, desconfie”, arrematou Mendes.GLOBO