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    quinta-feira, setembro 21, 2023

    Nem médicos nem monstros: a degradação causada pelo excesso de privilégio

     Estudantes de medicina fazem masturbação coletiva diante de jogadoras de vôlei em SP

     

    Estudantes de medicina que exibiram suas genitálias fazem parte de um grupo privilegiado de jovens ricos em um mundo fechado em sua classe, por famílias e escolas que foram incapazes de ajudá-los a ter um mínimo de visão do país e da sociedade onde vivem

    Por Daniel Becker
     
     A história da importunação sexual por alunos do curso de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa), de São Paulo, que exibiram suas genitálias, fazendo gestos masturbatórios e dancinhas num estádio, durante uma partida de vôlei feminino de uma competição universitária (que ocorreu em abril), chocou o país e movimentou as redes sociais.

    Como médico, como professor em faculdade pública de medicina e como homem, fiquei estarrecido e muito indignado. O desrespeito e a violência contra as mulheres é tão grave que ultrapassa qualquer limite concebível.

    O óbvio e o necessário já está ocorrendo: a manifestação de autoridades públicas, como os ministros da Educação e dos Direitos Humanos, o início das providências policiais e jurídicas, e a expulsão dos alunos. É mais que evidente que pessoas assim não podem em hipótese nenhuma serem médicos. Não preenchem os requisitos mínimos em matéria de ética e conduta pessoal que um médico deve ter na sua profissão: respeito ao outro, empatia, proteção dos vulneráveis, discrição, compaixão.

    Mas é preciso entender o gesto na sua origem. Não se trata de mais um “caso isolado”. Temos visto crescer a misoginia e as agressões contra mulheres nos últimos anos, com a tomada das redes pela extrema direita e grupos disseminadores do ódio. Temos visto as tentativas ultrajantes desses grupos de impedir o exercício de direitos já garantidos a grupos LGBTQIAP+, como ocorre agora no Congresso. Temos visto aumentarem, e pior, entre crianças e adolescentes, as manifestações de intolerância de todos os tipos, em especial o racismo, a misoginia e a aporofobia – ódio aos pobres.

    Ano passado um grupo de alunos de medicina (ela de novo, pobre carreira) da UNIG de Itaperuna, aqui no estado do Rio, foi expulso de uma competição esportiva por gritar “eu sou playboy, meu pai é rico, não tenho culpa se seu pai é motoboy”. A universidade é privada, tem péssimas qualificação no MEC, mas seus alunos são de classe média alta ou alta. Afinal, um curso privado de medicina não custa menos que R$ 10 ou 15 mil por mês, sendo que alguns vão bem acima disso.

    Portanto, não de trata de uma coincidência. Trata-se de um grupo extremamente privilegiado de jovens ricos, brancos, educados em um mundo fechado em sua classe, por famílias e escolas que foram incapazes de ajudá-los a sair do seu narcisismo autossuficiente, de terem um mínimo de visão do país e da sociedade onde vivem, um mínimo de senso de justiça e sentimento de coletividade, de compreensão da sua realidade social, do impacto da nossa terrível desigualdade, de terem noções básicas de empatia, postura ética para com os mais vulneráveis, as minorias, os menos privilegiados.

    São pessoas que estão aí, passeando entre os mais altos círculos em nossa sociedade e que, em breve, mesmo não podendo se formar nessa universidade, serão acolhidos com muita alegria por outras escolas, ávidas por seu dinheiro. E se não for na medicina, estarão em outras posições de poder.

    Nossa sociedade anda muito adoecida, atingindo níveis de selvageria sem precedentes. Se por um lado, as redes sociais cumprem um papel importante de denúncia e de quebra de relações patriarcais e de combate à intolerância, elas são talvez as principais responsáveis pela sua disseminação.

    Cabe a nós, como sociedade, reagir, não só à violência do caso em questão, mas tomando-o como um chamamento. É preciso olhar para a educação que nossas elites estão dando a seus filhos e chamá-las à responsabilidade. É preciso controlar e regulamentar as redes sociais e conter a disseminação do ódio pelos algoritmos, um movimento que sabemos ser tão lucrativo. E é preciso sobretudo que as escolas, públicas e particulares, da educação infantil até a universidade, promovam uma cultura de paz, de justiça, de tolerância, de inclusão, de valorização da diversidade em todas as suas dimensões. 

    O GLOBO 

     

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