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    quarta-feira, setembro 06, 2023

    CHILE

     


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     Dorrit Harazim

     Peter Kornbluh é incansável no seu pacto com a verdade e a História. Aos 67 anos, continua a não dar sossego a ditaduras, ditadores e ao governo que mais vezes incentivou a treva em terras estrangeiras — os Estados Unidos. Além de pesquisador sênior do National Security Archive (NSA), instituição que obtém, analisa e publica documentos secretos do governo americano graças à Lei de Liberdade de Informação, Kornbluh também dirige o Projeto de Documentação sobre o Chile, da mesma NSA. Às vésperas do 50º aniversário do feroz 11 de setembro de 1973 chileno, ainda resta muito a desenterrar sobre o golpe militar que matou, prendeu ou torturou pelo menos 40.018 pessoas. Mas Kornbluh tem método. E paciência. De garimpo em garimpo, ele desenterra novos documentos.

    Semanas atrás divulgou a transcrição de um telefonema do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, a seu assessor de Segurança Nacional, Henry Kissinger. Datado de 15 de setembro de 1970, o telefonema contém comentários de Nixon sobre seu encontro de véspera, ultrassecreto, com o todo-poderoso Agustín Edwards — dono do maior conglomerado de mídia do Chile. (Contexto: dez dias antes desse encontro, o socialista Salvador Allende conseguira surpreender meio mundo derrotando por estreitíssima margem o ultraconservador Jorge Alessandri. Pela legislação da época, o Congresso chileno precisava ratificar o resultado das urnas, abrindo o caminho para o presidente eleito assumir o Palacio de la Moneda.)

    Edwards tinha ido a Washington justamente para arredondar com o governo Nixon o plano em curso que impediria esse rumo da história: as Forças Armadas chilenas assumiriam o poder, dissolveriam o Congresso, e Allende não seria empossado. Soa familiar? Os conspiradores receberiam seguro de vida, armamentos e munição, além de garantias “claras e específicas de não serem abandonados ou postos no ostracismo” e US$ 50 mil em espécie. Tudo cortesia da CIA. O plano incluía sequestrar o comandante em chefe do Exército, general René Schneider, considerado um entrave constitucionalista.

    Só que deu tudo errado. Em novo telefonema de Nixon para Kissinger, desta vez já em outubro, o ocupante da Casa Branca pergunta:

    — O que está acontecendo no Chile?

    Kissinger respondeu ter havido um revertério para pior. O planejado sequestro do general, a dois dias da diplomação de Allende, fora um fiasco — a vítima acabou sendo mortalmente ferida à bala, e a população condenara a ação.

    — O passo seguinte — continuou Kissinger — deveria ter sido a tomada do poder, mas também isso não ocorreu. Provavelmente agora é tarde demais.

    Concluiu, com desprezo, que os militares golpistas eram “um bando de incompetentes” por não terem conseguido impedir a diplomação do eleito. A partir daquele 24 de outubro de 1970, em nenhum momento o magnata Edwards, os militares chilenos, a CIA, Kissinger ou Nixon deixaram de tramar, por um só dia, a queda do socialista dos Andes. Era só questão de tempo. O golpe veio nas primeiras horas do 11 de setembro de 1973, feroz, brutal, sanguinário. Durou 17 anos e teve no general Augusto Pinochet seu ditador-modelo: corrupto, obcecado e desumano.

    Entre os múltiplos eventos idealizados para marcar os 50 anos daquele trauma está uma edição em espanhol do trabalho de Kornbluh, pela Catalonia Books chilena: “Pinochet desclasificado: los archivos secretos de Estados Unidos sobre Chile”. Um documentário em quatro partes, baseado no esforço do pesquisador para desenterrar a documentação secreta do papel dos Estados Unidos na trama, também será transmitido por uma grande emissora de TV do país.

    — O Chile representa uma das mais infames operações clandestinas da CIA — diz Kornbluh —, pois é onde você tem um elo explícito de um presidente dos Estados Unidos ordenando a derrubada de um governo democraticamente eleito.

    Simples assim. O atual presidente chileno, Gabriel Boric, já solicitou ao governo do democrata Joe Biden a liberação de documentos da Casa Branca referentes ao Chile nos anos 1973 e 1974. Pedido difícil de atender, justamente pela ausência de escrúpulos que a papelada ainda poderá revelar.

    A ditadura chilena caminhava para seu 13º ano de abusos quando Boric nasceu, portanto o atual ocupante do La Moneda nada testemunhou. Por isso mesmo, quer que sua geração tenha acesso pleno e transparente a um passado nacional que muitos já tentam adulterar. De um ano para cá têm surgido postagens de extremistas rebatizando o 11 de setembro de “escolha pela liberdade” feita por chilenos patriotas. Soa familiar?

    Pela mesma razão, recomenda-se a leitura mais completa sobre a contribuição da ditadura brasileira ao golpe e à repressão da era Pinochet. “O Brasil contra a democracia – A ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul” (Companhia das Letras, 2021), do jornalista e analista internacional Roberto Simon, é leitura obrigatória para que esse capítulo trevoso da História do Brasil também seja corretamente aprendido. 

    O GLOBO  

    ilustração: MARCELO

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