anais da fotografia: Maturidade inventada
JEFERSON TENÓRIO
Um menino de 13 anos foi morto em agosto. Ele tinha ao menos cinco balas espalhadas pelo corpo – resultado de mais uma operação policial no Rio de Janeiro. Mais uma morte brutal, e o país não parou por causa disso. Houve pouca comoção. Pouco engajamento. Não se reclama pelo corpo negro alvejado.
De uma hora para outra, Thiago Menezes Flausino, morador da Cidade de Deus, se tornou mais um número. Ganhou um lugar na estatística fria e impessoal, que normaliza a desumanização de crianças e adolescentes negros nas periferias.
Observo as fotos do funeral de Thia-
go, especialmente a tirada por Selma
Souza, repórter fotográfica da ong Voz
das Comunidades. Amigos do menino
choram pelo fim precoce de alguém
que, semanas antes, convivia com eles.
Lembro-me de ter lido, certa vez, que o
pranto é a nossa primeira língua. É o
modo que temos para dizer algo quan-
do a palavra ainda não existe. E, mes-
mo depois que aprendemos a falar, que
aprendemos a escrever, é com o choro
que vamos expressar o indizível.
Lamento pela morte prematura de
Thiago e penso nos que ficaram. Nos
amigos e colegas da mesma faixa etária
que, agora, diante daquele que se vai,
terão de lidar com sua ausência. O lu-
to é um tempo de tristeza necessária.
O luto é esse rompimento dos vínculos
afetivos. Uma fratura inesperada daque-
le que nos era familiar e que subitamen-
te deixa de existir para nós.
Talvez a infância e a adolescência
sejam os lugares mais difíceis para en-
tender o fim da vida. Porque, nessas
fases, ainda não construímos aqueles
mecanismos psíquicos que nos permi-
tem lidar com o inesperado. A violência
não cabe na infância e na adolescência
ou não deveria caber. Para seguir, para
ir adiante depois da morte de alguém
tão novo, é preciso inventar uma matu-
ridade, improvisar um jeito adulto de
lidar com o trágico. De lidar com o
mundo interno que ruiu e que jamais
voltará a ser o mesmo.
A morte de pessoas negras são mor-
tes anunciadas. Corpos matáveis, sob
o aval do Estado. A morte de um ado-
lescente, assim, sem aviso prévio, sem
qualquer possibilidade de despedidas,
provoca uma fratura interior sem vol-
ta. Por isso, penso nos que ficaram.
Penso nos que permaneceram. Nos que
terão de lidar com a dor, com a falta e
com a tristeza.
O choro de crianças enlutadas da Ci-
dade de Deus é um choro de desespero.
E o desespero ainda é um modo de di-
zer não. O desespero ainda é um modo
de discordar da vida. É o último recurso
para a gente se manter humano. Aquele
pranto das crianças enlutadas é uma
busca pelo direito de ter infância.
Sinto que o luto nunca vai acabar,
nunca cessará. O corpo de Thiago con-
tinuará morrendo para meninos e meni-
nas que ficaram. Continuará morrendo
para os pais e parentes próximos. Sem
ele, será difícil jogar futebol no Projeto
Canelinhas. Será difícil inventar brin-
cadeiras, dar prosseguimento às con-
versas e percorrer o caminho até a
Escola Municipal Dorcelina Gomes
da Costa. Será difícil orar nas igrejas,
em qualquer igreja.
Esse é o luto que o Estado não verá.
O Estado apenas reduzirá o menino de
13 anos e sua existência a um efeito
colateral de mais uma operação poli-
cial. Entretanto, observando as fotos
do funeral, de repente percebo que é
justamente o pranto das crianças enlu-
tadas que conseguirá devolver a huma-
nidade a Thiago.
PIAUI