Virundum é coisa séria, embora seja impossível ficar sério diante dele
Sérgio Rodrigues
Está na hora de dar aos virunduns o peso cultural que eles merecem. Há dias lancei uma provocação no Twitter e o resultado foi uma explosão de mal-entendidos de fazer rir até estátua do Caxias. Nesta coluna vai caber só uma parte.
Sim, na terra em que brotou o clássico indiscutível "trocando de biquíni sem parar" (por "tocando B.B. King sem parar", verso da canção "Noite do Prazer", da banda Brylho), a produção de virunduns é tão vasta quanto variada.
Há quem aprecie a precisão onomástica de "Meu filho Válter Gomes dos Santos/ que é o nome mais bonito" ("Pais e filhos", Legião Urbana) e quem prefira o clima lisérgico de "Ao sair do avião/ Judy pisou num ímã" ("Açaí", Djavan).
Todos têm em comum a incapacidade de reprimir sorrisos quando expostos a versos crus como "Quem sabe a índia assou uma garotinha" ("Malandragem", Frejat e Cazuza, na voz de Cássia Eller) ou "Aí um analista me comeu" ("Divina comédia humana", Belchior).
Consta que o nome "virundum", baseado em "Ouviram do Ipiranga", foi cunhado por Paulo Francis nos tempos do "Pasquim" para nomear o mal-entendido provocado por uma semelhança sonora fortuita. O batismo em inglês veio antes.
Data de 1954 o artigo em que a jornalista americana Sylvia Wright lançou o neologismo "mondegreen", com base num poema popular do século 17 em que o verso "laid him on the green" (deitou-o na grama) é entendido como "Lady Mondegreen". A confusão é intraduzível, claro. Virunduns sempre são.
O importante é registrar que Wright foi, até segunda ordem, a primeira voz a se levantar em defesa dos mondegreens, sustentando que eles se impõem por serem esteticamente superiores aos versos originais.
Não sei se vou tão longe, por mais que "Scooby-Doo dos sete mares" ("O descobridor dos sete mares", Tim Maia) seja tentador. Quando digo que os virunduns merecem ser levados a sério como fenômeno cultural, penso num argumento semelhante ao que Paulo Rónai usou para defender os trocadilhos em seu livro "Como Aprendi o Português" (Edições de Janeiro).
Inconformado com a fama de "mais baixa forma de humor" que cerca o trocadilho, frequentemente visto por aí em companhia do adjetivo "infame", o erudito húngaro lembrou que ele foi cultivado por grandes escritores, como Shakespeare, e até por Jesus Cristo: "E também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja".
Não fica nisso. Rónai afirma que "o elemento essencial" do trocadilho é a impossibilidade –ou pelo menos a dificuldade– de traduzi-lo para outros idiomas, o que o torna "ligado à substância íntima de cada língua", como a melhor poesia. O virundum é igual.
Pela amostragem que recolhi, fica uma dúvida sobre quem seria o rei dos virunduns na música brasileira. O candidato mais óbvio é Djavan, que além de receber o maior número de citações é dono de um estilo em que a livre associação e os jogos sonoros fazem com que o próprio original já pareça um mal-entendido.
É preciso respeitar quem abre a porta para virunduns como "Mais fácil apedrejar pôneis em Bali" ("Se...") e "Amarelo deserto e os três tenores" ("Oceano"), além daquele que citei ali em cima.
Mas Djavan tem um grande rival em Belchior, dono de um feito raro —dois belíssimos virunduns na mesma canção. Em "Como nossos pais", encontramos "Mas é você que é mal passado e que não vê" e "Tá em casa, guardado por Deus, cortando fio dental". Duelo de titãs.
FOLHA
ilustração paulo caruso