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    quinta-feira, abril 06, 2023

    Em 'Memória Sufocada', Ustra e seus comparsas voltam a caçoar de nós

     

     

     

     Em 'Memória Sufocada', Ustra e seus comparsas voltam a caçoar de nós

     

    CAMILO VANUCCHI

    m cartaz nos cinemas desde o dia 30 de março, véspera do aniversário do golpe de 1964, o documentário "Memória Sufocada", de Gabriel Di Giacomo, reúne cenas que são uma estocada tão perversa quanto pedagógica em quem tem compromisso com a democracia. Se não chegam a torturar quem as assiste, algumas falas são dolorosas e podem funcionar como gatilho para muitas e muitos sobreviventes.

    Numa das cenas, vemos o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi de São Paulo na primeira metade dos anos 1970, negar que oposicionistas foram mortos no mais desumano centro de tortura daqueles anos.

    Na versão propalada por Ustra, a quem se atribui o apelido de "sucursal do inferno" dado ao órgão da repressão, apenas duas pessoas morreram nas dependências do órgão, ambas por suicídio: o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e o operário Manoel Fiel Filho, em 1976. As demais vítimas, segundo ele, foram alvejadas em confronto com as tropas do Exército ou da polícia, na rua, inimigos numa hipotética guerra patrocinada pelo Estado, e não executadas com descargas elétricas, afogamentos e golpes de cacetete, como de fato foram.

    Herói de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, autor de um libelo protofascista intitulado "A Verdade Sufocada", citado diversas vezes como livro de cabeceira pelo ex-presidente genocida (quem lhe conferiu tal alcunha não fui eu, mas o Tribunal Permanente dos Povos no ano passado), Ustra é, até hoje, o único torturador condenado pelo Judiciário brasileiro, numa ação declaratória, de caráter civil, à qual não coube exigir prisão, tornozeleira eletrônica, multa, serviços comunitários ou qualquer outra pena além da simples declaração, agora oficial, de que se trata, sim, de um torturador. Por extensão, tal exclusividade faz dele o único torturador que podemos chamar de torturador sem correr risco de processo por calúnia, injúria ou difamação.

    Triste o país que não se envergonha por condenar por difamação aqueles que denunciam a violência de Estado, os crimes imprescritíveis e contra a humanidade praticados sistematicamente por essa gente, enquanto passa pano há mais de 50 anos para o arbítrio e a barbárie.

    Mas, voltando à vaca fria do documentário, em outra cena um segundo depoente que frequentava as sessões de tortura no DOI-Codi, notório torturador e estuprador de presas políticas, repete calmamente ao microfone que nunca sequer entrou numa sala de tortura. Se não calmamente, ao menos com a tranquilidade de quem se habituou aos tapinhas nas costas, aos sorrisos cúmplices e à certeza da impunidade. Como Ustra faz questão de citar, jamais houve qualquer punição, retaliação ou advertência ao longo dos anos em que cumpriu com a missão que lhe foi conferida pelo Estado sanguinário.

    O que não faltaram — e ainda não faltam, até hoje, na caserna e em diversos setores das Forças Armadas — foram elogios e condecorações. É o suficiente para Ustra, o torturador, esmurrar a mesa, levantar a voz e indicar com orgulho a própria lapela, onde repousa a comenda do pacificador, a maior honraria concedida pelo Exército.

    Todas essas declarações foram feitas nas oitivas realizadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) entre 2012 e 2014. E chegam agora à tela grande, nove anos depois da entrega do relatório final da CNV, 59 anos depois do golpe, pelas mãos de Gabriel Di Giacomo.

    No documentário, os relatos feitos por Ustra e outros próceres do terror são acompanhados do testemunho de ex-presos políticos como Amelinha Teles, Adriano Diogo, Gilberto Natalini e Darci Miyaki, dona de um dos relatos mais emocionantes e contundentes do filme, também colhidos nas oitivas e audiências da CNV.

    Como estrutura narrativa, o diretor optou por palmilhar um caminho pouco usual. A cada novo conceito apresentado, a cada nome citado, a cada momento histórico demarcado, surge na tela a imagem de um navegador de internet e um campo de busca do Google. A palavra ou expressão é digitada, uma nova página é aberta, um vídeo é localizado.

    Na prática, o que os criadores do filme nos dizem é que está quase tudo disponível para quem quiser procurar, tanto as verdades factuais quanto as mentiras de Ustra e seus comparsas, tanto os registros de um tempo que jamais deveria ter acontecido quanto a desinformação, as fake news, a lenda de que não havia corrupção ou inflação nos anos de chumbo, a tese ridícula de que Jango estava para implementar um governo comunista no Brasil ou a cantilena abjeta de que a repressão só perseguiu terroristas — 8 mil e tantos indígenas mortos, 1.800 camponeses, mais de 10 mil brasileiros exilados e 20 mil torturados em duas décadas.

    O jornalista Matheus Pichonelli, aqui mesmo no UOL, conversou com o diretor Gabriel Di Giacomo e analisou mais demoradamente o documentário em reportagem publicada na semana passada. O que mais surpreende ali é a repercussão da matéria, os comentários perpetrados na página ou nas redes sociais, assim como a repercussão do filme ou a repercussão que este meu texto possa vir a ter. A quantidade de bobagens que surgem é sempre aviltante e assustadora. Efeito, indubitavelmente, da forma como o tema foi escamoteado desde a redemocratização.

    Sob o argumento da conciliação nacional, do "virar a página", a mesma lorota que é dita há mais de um século sobre a mestiçagem e o mito da democracia racial para sufocar a memória do holocausto escravagista ao qual fomos submetidos por séculos com o beneplácito das igrejas, do sistema de Justiça, da elite e dos homens de bem, perdemos, até agora, as muitas oportunidades de tratar com a devida vênia os crimes cometidos pela ditadura e condenar quem precisa ser condenado — e que nunca foi nem sequer citado em inquérito.

    A maior das sequelas herdadas da impunidade é o salvo conduto para que a tortura continue comendo solta nas delegacias de polícia, para que estudantes continuem sendo fuzilados por agentes do Estado, para que Amarildos continuem desaparecendo, para que CPFs como o de Marielle Franco continuem cancelados e para que golpistas com porte de armas e camiseta da CBF sintam-se seguros para bloquear estradas, acampar em frente a quartéis, promover terrorismo e vandalizar o patrimônio público e a própria Constituição.

    Como diz o jurista espanhol Baltasar Garzón, juiz que emitiu uma ordem de prisão contra o ex-ditador chileno Augusto Pinochet e conseguiu que fosse preso em 1998, antes de virar a página é preciso ler o que está escrito na página. E aprender com ela.

    UOL

     

     

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