100 dias de civilidade
Conrado Hübner Mendes
A erosão democrática precisa da nossa preguiça. Precisa de nossos juízos apressados, nossas comparações do incomparável, nossos vícios de perspectiva, nossos erros de categoria e de análise. Precisa de memória atrofiada, de curto e de longo prazo.
O programa de autocratização do governo Bolsonaro pediu que confiássemos no "risco-zero" da democracia e na promessa de que esse regime "modera" sociopatas. Pediu que os poderes "dialogassem" dentro das "quatro linhas" sob "moderação" das Forças Armadas.
Jornais hesitaram em usar as palavras certas para reportar o que viam. Extremistas eram "manifestantes", mentir equivalia a "declarar", delinquência se parecia com "polêmica", violação passava por "excesso", crime por "controvérsia jurídica".
Tentaram assegurar voz ao "outro lado", mesmo que esse lado fosse imune à experiência sensorial da Terra redonda e do vírus, ou à experiência moral da violência e da indignidade radical. Tudo em nome de um pluralismo às cegas que vai corroendo as condições de possibilidade do próprio pluralismo. De uma tolerância sem critério que vai exaurindo a sustentabilidade da tolerância.
Cientistas políticos e juristas observavam a paisagem de instituições mal funcionando e davam baforadas antialarmistas de seus gabinetes. Depois que Bolsonaro perdeu a eleição, um prêmio que a fortuna nos reservou, celebraram o acerto do prognóstico. Contudo, não foram essas pílulas tranquilizadoras que nos salvaram, por enquanto, do pior.
Os três meses de governo Lula já nos deram amostras do que a análise política brasileira pode fazer. Lula faz críticas ao Banco Central. Aparece o economista e contrasta com as ameaças feitas por Bolsonaro ao STF. Lula especula, de modo pouco responsável, armação do juiz que o condenou ilegalmente à cadeia. Aparece o texto para gritar que "se iguala ao pior do bolsonarismo e suas teorias da conspiração". Governo Lula patina no trato com o Congresso. Está "sem rumo, sem agenda".
Nesses três meses, o governo federal voltou a cumprir decisões judiciais que vinham sendo ignoradas por Bolsonaro (terras indígenas, por exemplo). Cumpriu a lei e implantou programa de dignidade menstrual, ignorado pelo anterior. Revogou decreto de armas. Produz normas para combater o garimpo ilegal e o tráfico de ouro. A sociedade civil tem sido recebida em ministérios. A ciência, a docência e a cultura voltam a experimentar liberdade e recursos.
Melhor começar a perceber as diferenças comensuráveis e incomensuráveis com os últimos quatro anos. Melhor refinar a escala de indicadores, porque a ligeireza das comparações custa caro.
Nossa dificuldade de reconhecer e sancionar a enormidade de Bolsonaro tem história: o plano terrorista em 1987, a defesa de fuzilamento de Fernando Henrique nos anos 90, o elogio a torturador confesso em 2015, o "vai pra ponta da praia" em 2018, o "não sou coveiro" e "filmem as UTIs" em 2020, o "não vou obedecer" em 2021, as interferências no processo eleitoral em 2022, o 8 de janeiro de 2023. E a holística corrupção familial.
Em seu governo faltou oxigênio, não só para a respiração pulmonar. Não se respirava nem a expectativa de segurança existencial. Não se respirava futuro, apenas medo do futuro sob a liderança de quem ascendeu sob a promessa de exterminar desafetos e suprimir minorias.
Quando o bolsonarismo deixar a violência e o ataque às liberdades, como desejou editorial desse jornal, deixa de ser bolsonarismo. Vira outra ontologia. Bolsonaro não liderou um governo, uma racionalidade institucional, uma política pública sequer. Foi capaz de realizar nada exceto a política de liberação, negação e agressão. Como poderia liderar uma oposição?
Não há razão para aliviar a crítica justa ao governo Lula. Há razão para fazer crítica ainda mais dura, quando cabível. Desde que se tenha consciência de qual o valor em jogo. Porque crítica justa precisa ter um horizonte normativo e histórico. Um norte e um sul.
Em 2003, Lula tinha desafios para a continuidade de um governo do PT e de políticas públicas inclusivas. Em 2023, Lula tem desafios de continuidade democrática. Vinte anos atrás, erros custariam o governo. Erros, agora, podem custar o regime.
O resgate da civilidade e da normalidade possíveis, nesses cem dias, e
o esforço de reocupar com competência burocrática um Estado vandalizado
pela delinquência autocrática, não podem ficar de fora de qualquer
balanço.
FOLHA