Igrejas que montaram caravanas golpistas ficam em polos do agronegócio
LEONARDO SAKAMOTO
organizar caravanas para evangélicos bolsonaristas irem a Brasília vandalizar e roubar o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF, lideranças religiosas acabaram reescrevendo o Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículo 21, que trata da relação entre o cristianismo e a autoridade secular. Saiu o "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" trocado por "Dai a Bolsonaro o que é de Lula, e a democracia que vá para o inferno".
Aguirre Talento, do UOL, analisou cerca de mil depoimentos sigilosos prestados à Polícia Federal por golpistas presos no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército. Descobriu que evangélicos bolsonaristas relataram que igrejas bancaram ônibus e organizaram viagens para os atos de 8 de janeiro.
Muita liderança religiosa picareta ganhou horrores com suas empresas, opa, igrejas, ao longo do governo Bolsonaro. Seja com imunidade tributária, seja com favores, seja até abrindo o Ministério da Educação para cobrar propina em barras de ouro, abundam os casos de promiscuidade entre mercadores da fé e o ex-presidente. O que me interessa aqui, contudo, é entender o contexto dessas caravanas.
A reportagem de Aguirre Talento traz como exemplo igrejas e pastores de Sinop (MT), Uberlândia (MG), Xinguara (PA) e Maceió (AL) como citados dos depoimentos. Nos quatro municípios, Bolsonaro teve mais votos que Lula. Com exceção da capital alagoana (a única do Nordeste a dar maioria ao, hoje, ex-presidente), os outros são polos importantes da expansão do agronegócio. O que não é coincidência.
Os municípios fazem parte do que o pesquisador Mathias Alencastro chamou de "Mega-Centro-Oeste", região que vai do interior de São Paulo até a fronteira agrícola amazônica. Ela cresceu mais que o restante do país, sendo cantada pelo sertanejo e tendo a fé organizada por evangélicos, principalmente neopentecostais.
É um espaço mais conservador em costumes e comportamentos, que Bolsonaro soube cultivar diligentemente com ações simbólicas e apoio econômico ao longo do seu mandato. Não à toa, as diferentes camadas desse contexto agiram em sua defesa na campanha eleitoral do ano passado. E, após a sua derrota, muitos de lá cerraram fileiras, trancando rodovias federais e acampando na porta de instalações militares. No limite, encheram ônibus para tentar um golpe de Estado.
A hiperpolitização dos púlpitos, que se intensificou entre abril e maio deste ano, e transformou algumas igrejas em comitês eleitorais, teve grande força nesses locais. Quem discordava desse alinhamento foi ameaçado, expulso ou pior.
Em Goiânia, após um pastor associar o diabo ao PT no culto, um fiel reclamou do envolvimento da igreja nesse debate e foi chamado de demônio. Segundo o fiel, sua família parou de ser cumprimentada na igreja e começou a ser ameaçada. Até que, no dia 31 de agosto, após uma discussão dentro do templo, seu irmão foi baleado com um tiro que atravessou as duas pernas por um policial. O culto continuou mesmo assim.
Mas isso também trouxe efeitos colaterais. Após lideranças de igrejas que se aliaram ao presidente passarem a substituir tempo de pregação da palavra de Deus pela defesa veemente de que Bolsonaro representa Jeová e Lula, Lúcifer, muitos eleitores evangélicos se empapuçaram com a hiperpolitização. E o número de reclamações subiu frente a pastores que ignoravam exatamente o "Dai a César o que é de César".
Lula reagiu tentando mostrar que se importava com eles, uma antiga reclamação do segmento, com a esperança de que isso estancasse sangria de votos. Ironicamente, Jair orava e abraçava a Bíblia, mas não tinha atitudes defendidas por cristãos. Por exemplo, disse que "pintou um clima" entre ele e meninas refugiadas venezuelanas de 14 anos. E tentou surrupiar R$ 16,5 milhões em joias que pertenciam ao Estado brasileiro.
Apesar da insistência dos mercadores da fé e de seus representantes políticos em verem luz nas trevas do 8 de janeiro, a maioria das igrejas vem despolitizando os púlpitos após a mudança de governo, com lideranças aceitando Lula como presidente.
E a participação de denominações e lideranças evangélicas nos atos golpistas precisam ser analisada com mais profundidade. E os responsáveis devem ser punidos pela força da lei, com tempo de xilindró.
Mas esse salto entre a crítica ao Estado laico e o abraço a um Estado golpista, principalmente na região do Mega-Centro-Oeste precisa ser compreendido como um fenômeno que vai além da religião. Há um outro Brasil ali, que se não for entendido pela atual administração, irá mais cedo ou mais tarde devorá-la.
UOL