'Comunismo' é ameaça para 44%, diz Ipec, mesmo que não saibam o que é isso
Leonardo Sakamoto
Pesquisa Ipec, divulgada neste domingo (19), aponta que 44% concordam totalmente (31%) ou em parte (13%) com a afirmação de que Brasil pode se tornar comunista. O fascinante é que muitas dessas pessoas não fazem ideia do que seja o comunismo, repetindo chavões ensinados por lideranças da extrema direita, que usam o termo para identificar e controlar seu rebanho.
A palavra "comunismo" retirada de seu sentido original, de propriedade comum dos meios de produção e da ideologia por ela sustentada, se tornou no Brasil um simples comando para o linchamento digital, independentemente de quem esteja do outro lado. O objetivo é tirar a credibilidade e destruir, muitas vezes para servir de exemplo. E, consequentemente, esse processo tornou a palavra depositária do "mal". E um grande mal é sempre temido e vira uma ameaça.
Entres esses 44%, há quem defenda que o Brasil implemente o comunismo e os oportunistas que sabem que isso não está no horizonte, mas dissemina isso mesmo assim para causar medo entre seus seguidores. Esses dois grupos são numericamente pequenos. A esmagadora maioria é formada de pessoas que "aprenderam" que comunismo é algo ruim mesmo sem saber o que ele é.
Muitos que "xingam" pessoas ou instituições de comunistas não compreendem o que isso, de fato, a palavra significa. Caso as pessoas soubessem História e estivessem atentas ao que se passa à sua volta, buscando saber as manifestações do comunismo no Brasil e no redor do mundo, poderiam, inclusive, criticá-lo de forma mais embasada. E, acredite, há críticas a serem feitas.
Ouviram de seus "mentores" que comunismo é um tipo de "governo", formado por "vagabundos que não gostavam de trabalhar", que ajuda a "perverter sexualmente" as "pessoas de bem" e a "destruir as famílias", controlado por "bilionários pedófilos" e "atores de Hollywood" que tentam "vacinar os cidadãos com chips 5G" a fim de controlar seus pensamentos. O excesso de aspas não é proposital, apenas triste.
Graças à sabedoria que circula nas redes sociais, descobrimos, que a cantora Madonna, a revista Economist, as Nações Unidas, o jornal New York Times, a Rede Globo, o Facebook, o Twitter, o cantor Roger Waters, o filósofo e economista conservador Francis Fukuyama, a deputada de extrema-direita Marine Le Pen, banqueiros multibilionários e a multinacional Pfizer são comunistas. Além de Leonardo DiCaprio e Tite, claro.
Bolsonaristas chegaram a chamar a Embaixada da Alemanha de comunista por ela ter postado um vídeo explicando que o nazismo é um movimento de extrema-direita após Jair defender essa aberração ao visitar o Memorial do Holocausto (sim, a gente passou muita vergonha internacional nos últimos quatro anos).
Pior: nossos conterrâneos disseram aos alemães que eles não entendiam muito bem o que era o nazismo. Como na vez que tentarem explicar a Roger Waters, fundador do Pink Floyd, a intenção por trás de Another Brick in the Wall, sua própria música.
O macarthismo tupiniquim inaugurado com o processo de impeachment de Dilma Rousseff fez com que pessoas fossem perseguidas por suas ideologias e até caçadas nas ruas só porque estavam vestidas de vermelho. Bolsonaro foi além e, seguindo a cartilha da extrema direita global, fomentou a ficção de que vivemos sob o risco da implementação do comunismo.
Visto como delírio por quem é bem informado, inclusive pelos poucos que defendem um Brasil comunista, a "ameaça fantasma" é uma excelente forma de gerar medo e manter o público engajado.
Houve um esvaziamento do sentido original da palavra. Não raro, muitos que chamam alguém de comunista, acham que estão usando um palavrão genérico. Chega a ser patético as cenas de documentários que mostram o crescimento da extrema direita pedindo para bolsonaristas ou trumpistas explicarem o que é comunismo.
Despida de seu significado, o termo também se tornou um elemento de identificação de grupo. Ou seja, uma postagem chamando a Pfizer ou Tite de comunistas imediatamente passa uma mensagem compreendida pelos demais membros do grupo, gerando conexão. De que aquilo é ruim, de que não deve ser consumido, de que deve ser combatido.
E isso não é monopólio da loucura que cresce nas redes sociais ou aplicativos de mensagens. Tive a oportunidade de ouvir no Congresso Nacional que o combate ao trabalho escravo, ao trabalho infantil e ao tráfico de pessoas são coisa de "comunista".
Ou seja, o combate ao trabalho escravo, que, em última instância, significa garantir que o contrato de compra e venda de força de trabalho, base do capitalismo, seja feito corretamente, é expressão do comunismo. Tudo para maquiar interesses de quem lucra com isso.
Isso, claro, não cola na maior parte da população, que percebe o quão bizarro é esse processo - o Ipec apontou que 47% discordam totalmente ou em parte da afirmação de que o comunismo vai invadir o Brasil. Ainda sim, 44% é muita coisa.
O suficiente para vacinar com realidade paralela um naco da população, mantendo a sociedade ultrapolarizada e garantindo que fãs e seguidores do ex-presidente não percam a fé no capitão. Bem, pelo menos esse tipo de vacina ele nunca deixou faltar no país.
Como já disse aqui, hoje a palavra é "comunismo". Amanhã, quem sabe, será "democracia".
FOLHA