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    quarta-feira, fevereiro 22, 2023

    Yoko Ono sempre quer te perturbar

     


     GABRIELA RAMOS DE ALMEIDA

    "Em 1971, os jornais The New York Times e The Village Voice anunciaram a exposição Yoko Ono: One woman show, em cartaz no Museum of Modern Art (MoMA). A mostra tinha catálogo próprio e atraiu centenas de visitantes que, ao chegarem ao local, descobriam que a exposição consistia em uma intervenção não oficial no jardim de esculturas do MoMA na qual um homem informava aos interessados que a artista havia levado até lá um recipiente cheio de moscas com o cheiro do perfume que ela usava, aberto a tampa e liberado as moscas, que se espalharam pelo jardim, pelo museu e pela cidade. Quem quisesse poderia tentar procurá-las. 

    A exposição existiu e não existiu: existiu porque tinha anúncio e catálogo, e porque o relato em si fazia com que os visitantes passassem a imaginar a obra. E não existiu porque nunca fez parte da programação do MoMA, além de ser desprovida de qualquer materialidade. Aqui importa menos a verdade factual e mais o gesto performático e fabulatório que Yoko Ono continuará colocando em cena em sua extensa carreira: os relatos sobre a exposição produzem rastros que por sua vez geram imaginação e memória, fazendo com que, mais de 50 anos depois, estejamos aqui especulando sobre o que ela teria (ou não teria) feito. 

    O episódio do MoMA, executado quando a artista nascida no Japão, entre idas e vindas a Tóquio e Londres, morava em Nova York havia já quase 20 anos, ilumina uma trajetória artística de sete décadas marcada pelo pioneirismo da consciência performática, pela inscrição do feminismo na performance art e pelo desejo de jogar com a indiscernibilidade, de trabalhar com a arte como campo de probabilidades capaz de perturbar o público, invocando aquilo a que Umberto Eco denomina de “atos de liberdade consciente” em seu tratado de 1962 sobre forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas, Obra aberta.

     O estranhamento e a perturbação como marcas da experiência estética oferecida pelo trabalho artístico de Yoko Ono são verificáveis desde a observação à reação crítica ao seu trabalho nos anos de 1960 até os comentários tanto sobre suas performances em museus e galerias quanto sobre aparições televisivas recentes disponíveis no YouTube. A aparente banalidade de uma singela maçã verde disposta em um pedestal de acrílico (Apple, de 1966) ou a aleatoriedade de uma performance composta por três minutos de gritos e gemidos que evocam prazer, dor, descontrole, êxtase e repetição, como na execução de Voice piece for soprano – instrução escrita em 1961 e encenada em 2010 no mesmo MoMA – levam ao paroxismo o questionamento tão comum à arte contemporânea sobre quais critérios são utilizados para definir o que é arte, quem é autorizado a adotá-los e quais são, afinal, as instâncias de consagração e reconhecimento do campo. Yoko Ono transita de modo tão onipresente e desestabiliza performativamente a figura do artista de tal modo que nos faz pensar sobre performance mesmo sem que tenhamos consciência disso. Ao digitar seu nome no Google, uma das primeiras sugestões automáticas do buscador é “Por que Yoko Ono grita?” 

    A mesma artista que incomoda os desavisados com suas performances guturais, seja no museu ou dividindo o palco com Lady Gaga, é coautora de uma das músicas mais populares e tocadas da história – Imagine, canção que foi criada, aliás, com inspiração em textos seus anteriores publicados no livro Grapefruit (1964). E se a misoginia também tem sido um traço do modo como Yoko Ono vem sendo tratada publicamente ao longo do tempo, muitas vezes reduzida a apêndice do artista genial, desde a repetida acusação de que teria sido responsável pelo fim dos Beatles até as reações negativas ao seu trabalho artístico, baseadas menos em juízo de valor e mais num incômodo com sua figura pública e com a estranheza de sua poética, não se pode esquecer que ela só foi creditada oficialmente como compositora de Imagine em 2017, em resposta ao desejo manifesto tardiamente por John Lennon, já que ele mesmo assinou sozinho a autoria da canção em sua gravação original, lançada em 1971.

     Para muito do que se faz de perturbador na arte, a impressão é de que Yoko Ono — figura interessante por ser ambígua — já havia feito antes 

    A mesma artista que é personagem central da cultura midiática sem que seu reconhecimento esteja à altura de sua onipresença criou e encenou ainda em 1964 a performance Cut piece, em que se mantinha sentada solitária no chão do espaço cênico, imóvel e inexpressiva, enquanto o público dispunha de uma tesoura e cortava partes de suas roupas, tornando seu corpo bastante vulnerável. Inevitável a lembrança de Marina Abramović e sua perturbadora e mais conhecida performance Rhythm 0, com todas as questões evocadas ali relativas a gênero, ética, alteridade, fragilidade, sofrimento e violência coletiva. Ou seja, ainda que Abramović tenha se tornado figura referencial da arte performática feminista e tenha ajudado a popularizar a performance como território de antecipação da discussão sobre feminismo na arte ocidental na virada do século, Yoko Ono havia elaborado um dispositivo de criação bastante semelhante uma década antes. Com ela é assim: para muito do que se faz de perturbador na arte (e sem qualquer intenção de estabelecer aqui um “grau zero”), a impressão é de que Yoko Ono já havia feito antes. 

    A mesma artista protagonista de uma das imagens fundamentais da cultura visual contemporânea – a foto com John Lennon nu abraçado a seu corpo vestido, feita por Annie Leibovitz e publicada na capa da revista Rolling Stone em janeiro de 1981 e que se tornou histórica não apenas pela sua força expressiva e pela nudez, mas também por ter sido feita no mesmo dia do assassinato do músico – aprendeu a circular entre o experimental e o pop muitos anos antes, seja em função de sua própria formação musical, seja pela sua capacidade de leitura do espírito do tempo. 

    Ainda em meados dos anos 1960, em meio aos seus investimentos na interface entre música e performance art e também de sua atuação junto ao movimento Fluxus, Yoko Ono produziu em seu apartamento novaiorquino a temporada que ficou conhecida como Chambers street loft series, com a realização de shows e performances que passaram a ter entre o público gente como Peggy Guggenheim, Max Ernst e Marcel Duchamp, pelo que ela conta. Esse é o momento também em que Yoko Ono estabelece uma parceria de criação com John Cage, fortalecendo seu elo com a música experimental, bem como o período em que inicia uma aproximação com Andy Warhol, passando a frequentar The Factory (o conhecido estúdio do artista), e com Jonas Mekas, que produz em 1969 o curta Bed-in, filme no qual registra a ação Bed-in for peace, em que Yoko Ono e John Lennon utilizaram sua popularidade para protestar contra o acirramento da violência estadunidense na Guerra do Vietnã (dos anos 1950 aos 1970) com performances realizadas em camas de quartos de hotel. 

    Esse trânsito é justamente onde se localiza uma parte importante da agência da artista: dos contextos midiáticos de maior exposição ao ambiente dos museus, passando pela cena vanguardista novaiorquina das décadas de 1960 e 1970, Yoko Ono é uma figura tão interessante justamente porque muito ambígua. Não se enclausura no mercado da arte e, ao mesmo tempo em que aparece como uma personagem pop, também ocupa os espaços museísticos com trabalhos de intensa radicalidade. Joga com a fama e, embora o casamento célebre e sua atuação política pacifista eventualmente tenham eclipsado seu trabalho artístico, é capaz de se manter como aquela figura que todo mundo conhece, ainda que talvez pouca gente tenha a dimensão da extensão de sua produção artística, tanto em termos de linguagens e suportes como de perenidade. Circula entre o pop, a vanguarda e o experimentalismo produzindo desde performances que parte do público considera insuportáveis até discos de música pop, dance e rock com singles que chegam ao topo das paradas, como Walking on thin ice e Everyman/everywoman. 

    Também marca a sua trajetória a capacidade de estabelecer parcerias de criação no campo da música e se manter como uma figura de referência com quem muitos artistas mais jovens gostariam de trabalhar. Já no século XXI, com mais de 70 anos, gravou dois ótimos discos – Yes, I’m a witch (2007) e Yes, I’m a witch too (2016) – com remixes de canções suas e participações da nata do indie pop, do electro e do rock experimental, como Le Tigre, Peaches, Cat Power, Death Cab for Cutie, Moby, The Flaming Lips e Jason Pierce, do Spiritualized. Em 2012 lançou o difícil álbum Yokokimthurston, parceria com Kim Gordon e Thurston Moore, ex-integrantes do Sonic Youth. Um disco com 60 minutos e apenas seis músicas, composto basicamente da performance vocal de Yoko Ono e do instrumental noise de Gordon e Moore, com algumas intervenções vocais também do ex-casal. Um álbum de música experimental que funciona bem como síntese dos interesses e trajetórias dos três artistas, com marcas autorais bastante reconhecíveis, mas de uma escuta árida que demanda enorme disposição – inclusive em função do formato das músicas, que não possuem estrutura formal convencional. 

    Figura aparentemente capaz de estar ao mesmo tempo em todos os lugares e em lugar nenhum, Yoko Ono opera dissenso e perturbação sensível em todos os espaços que ocupa. Embora Nova York seja a cidade em que vive há mais de 60 anos e onde produziu praticamente toda a sua obra, exercendo também enorme influência como farol da cena artística local ao longo das décadas, apenas em 2015 ganhou uma mostra dedicada inteiramente à sua obra no mesmo MoMA em que produziu sua ocupação de guerrilha em 1971. E se sua vida e obra carregam um caráter não apenas fabulatório e performático como também anedótico, faz muito sentido que justamente na montagem de uma exposição sua no Instituto Tomie Ohtake (SP), em 2017, um telefone fixo acompanhado da frase “Quando o telefone tocar, saiba que sou eu”, que era um dos trabalhos à mostra, de fato tenha tocado. Mas era o telemarketing, não era Yoko Ono."

    SUPLEMENTO PERNAMBUCO 




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