Não reformar a instituição mais covarde será uma forma de anistia
Conrado Hübner Mendes
Há pouca dúvida de que militares da ativa e da reserva cometeram crimes e infrações legais no dia 8 de janeiro de 2023. E no dia 7 de setembro de 2022. E na gestão da pandemia. E na gestão da Amazônia e de terras indígenas. E nas motociatas. E nos comícios. E nos quatro anos de governo Bolsonaro. Nem se fale dos crimes contra a humanidade do passado.
Na intentona de 8 de janeiro, depois de semanas protegendo e instigando, em território militar, acampamentos que pediam o fim da democracia, militares teriam impedido a polícia de realizar prisões em flagrante de pessoas que depredaram a Esplanada. Permitiram detenções só no dia seguinte, quando muitos já teriam escapado.
Lula tem dado alguns sinais de que está disposto a escancarar a ameaça militar no Brasil. E assim desencadear algum processo de mudança. Diante desses gestos, textos jornalísticos não hesitaram em dizer que "generais se irritam" ou "Lula queima pontes" com militares.
Não são descrições neutras de fatos. Carregam suposições normativas escondidas. Segundo essas suposições, um presidente da República deve tratar militares como bichos de pelúcia. Deve se esforçar para "construir pontes" e se atentar para a irritabilidade de generais. Essas suposições, claro, vão de encontro ao lugar que a Constituição lhes atribuiu. A escolha das palavras e das metáforas diz muito sobre a naturalização de ator político ilegítimo.
As Forças Armadas não são Poder de Estado. Executivo, Legislativo e Judiciário são Poderes independentes. O Ministério Público, o Banco Central e as agências reguladores são instituições autônomas. As Forças Armadas, não. Nem independentes, nem autônomas. Têm atribuição institucional delimitada. Devem formular e executar política pública subordinada a autoridades democráticas. Fora desse terreno, sua presença se torna espúria.
A sociologia política chama de "institucionalização dissonante" o descompasso entre imagens conflitantes que uma sociedade faz de si mesmo e seu reflexo nas instituições. A dissonância entre a realidade e a autoimagem e status constitucional das Forças Armadas brasileiras é exemplo gritante desse fenômeno. Formalmente e retoricamente, são uma coisa. Informalmente, são outra.
Vendem-se como instituição marcada pela obediência, hierarquia, disciplina, decência ética e neutralidade política. Entregam desobediência, insubordinação, delinquência, obscenidade, sectarismo e fisiologismo.
E ainda alimentam, em fraude hermenêutica dolosa do artigo 142 da Constituição, a noção de "poder moderador", relíquia do constitucionalismo imperial. Naquele modelo peculiar de separação de poderes, a instituição do imperador pairava acima dos outros poderes. Podia interferir se os mal-comportados precisassem de tutela.
Como escreveu Edson Rossi, as Forças Armadas não só mataram mais patriotas que estrangeiros em sua história, como gastam, hoje, na folha de pagamentos, mais que saúde e educação juntas. E ainda têm mais de 1.600 agentes recebendo acima de R$ 100 mil.
Mal-armados de integridade institucional, mal-armados de vocação democrática, mal-armados de argumentos, mal-armados de história digna de respeito, ainda exibiram uma apoteose de incompetência técnica nos cargos do governo Bolsonaro. Negacionistas pandêmicos e climáticos, cínicos sobre soberania nacional, liberaram a Amazônia para o crime organizado e retiraram dos hospitais de Manaus o oxigênio. Por exemplo.
Militares aplicaram golpe, implantaram ditadura, torturaram mulheres nuas na frente dos filhos. Anistiados, dizem-se injustiçados pela falta de reconhecimento do serviço que teriam prestado. Não bastasse, continuam a conspirar. E a tuitar para intimidar juízes.
O país poderia discutir quais Forças Armadas precisa ter. Se uma que conspira contra a democracia e violenta cidadãos a pretexto de combater inimigos internos; se uma que se sente livre para invocar competências constitucionais que não tem; se uma que ensina em suas escolas que a tortura foi meio legítimo de combater o "comunismo", ou uma que serve à defesa da liberdade e da cidadania.
Punir militares individualmente envolvidos no atentado de 8 de janeiro seria passo importante. Sem anistia. Mas não reformar as Forças Armadas e as relações civil-militares é outra forma de anistia. E mais grave.
Abriu-se rara oportunidade de trazer a instituição mais covarde do Estado brasileiro para a democracia. Se não agora, quando?
FOLHA