VAR 2.0, o novo Deus do futebol
Se há um ponto de aprovação quase geral e zero controvérsia nesta Copa é o "VAR semiautomático". Esse sistema que coleta a posição de 29 pontos do corpo de cada jogador em campo 50 vezes por segundo e da bola 500/s veio para terminar com a demora e as contestações contra a arbitragem em lances de impedimento. E tudo é feito quase sem interferência humana.
Rapidez nas conclusões e clareza nas imagens, em nada se parece com o VAR tradicional, em especial o brasileiro (... pausa para lembrar aquela decisão absurda que prejudicou o seu time no momento-chave de alguma competição). A arbitragem virou suave como seda.
O que mudou a credibilidade geral é o uso de um plano virtual vertical, paralelo ao formado pelas traves e que trisca o ponto mais recuado do corpo do penúltimo jogador (o último costuma ser o goleiro). Se houver uma parte do atacante além desse plano, é impedimento. Os braços não contam.
Enfim, no novo sistema não há nem espaço para discussão. E é aí que está o problema.
O que o software mostra na TV é uma ilustração, não a situação real. Diante daquela imagem não há o que contestar porque o fato não foi exibido. Ninguém sabe o que ocorreu. O público é empurrado suavemente a acreditar na imagem.
O sistema veio do tênis, onde um computador avisa ao juiz de cadeira (e numa imagem digital ao público) se a bola foi boa ou fora —exceto nos torneios de saibro, onde a marca da bolinha ainda manda. A empresa é a mesma, Hawk-Eye (Olho de Falcão, em tradução livre, referência à visão dessa ave).
O futebol tem um porém. O árbitro é a autoridade máxima. É por isso que o árbitro de vídeo se chama VAR (árbitro assistente de vídeo). >
O VAR 2.0 coloca essa autoridade em xeque. A máquina apresenta um resultado que nenhum árbitro vai confrontar. Todos concordam que a decisão do programa é correta sem saber exatamente como ele a tomou.
A questão central é que, fora seus criadores, ninguém sabe com detalhes como o programa funciona, nem mesmo qual é a margem de erro de fato. Esse VAR está criando uma nova realidade, baseada em consenso e não apenas em fatos.
Ao contrário das tão discutidas urnas eletrônicas brasileiras, o VAR semiautomático não é auditável. A Fifa não disponibilizou nenhuma maneira de checar se o sistema tem alguma imperfeição importante –por exemplo, será que a comunicação por ondas entre a bola e ele é à prova de hackers?
E, se a sua seleção for prejudicada por uma decisão desse cérebro eletrônico, não adianta ir ao quartel-general da Fifa pedir anulação do segundo tempo, intervenção militar, nem se agarrar na frente do caminhão que levará o equipamento ao aeroporto e daí para um local desconhecido.
Esse VAR virou uma espécie de Deus: aceitamos e obedecemos, sem questionar. Mas, se não se pode questionar a moralidade das decisões de Deus, o mesmo vale para uma máquina? No mundo todo, a discussão sobre a moralidade das decisões tomadas por máquinas é intensa. No futebol, não.
FOLHA