Não gosto de não gostar de Neymar
de MILLY LACOMBE
Eu não gosto de não gostar de Neymar. Quando vejo ele deixar de lado seguranças e o grude de Dani Alves para abraçar uma criança sinto coisas desordenadas e difíceis de nomear.
Tive essa sensação assistindo ao documentário Caos Perfeito, da Netflix. A relação dele com o filho me tocou de forma profunda. Escrevi sobre isso nesse texto aqui.
O jeito como ele pega na bola, dribla, se movimenta em campo. A inteligência tática. A intuição, o improviso, a arte. Um talento tão raro e tão nosso.
Confuso.
Prefiro os dias em que detestá-lo é simples.
A treta com a receita, a demora para entrar em campo quando o time inteiro já está postado, a molecagem de um apoio indecente à ideologia nazi-fascista que o bolsonarismo representa, o rompimento com a Nike por acusação de violência sexual.
Mas aí ele abraçar o menino croata negligenciado por seguranças e por Daniel Alves e eu fico outra vez desorientada.
Em roteiros de ficção as melhores personagens são aquelas multidimensionais. São as que você quer xingar e depois acolher e depois xingar e outra vez acolher.
As grandes personagens são as que se apresentam emocionalmente escangalhadas e, numa jornada de sofrimento e tristeza, se metem na escuridão, encaram batalhas, vencem, e voltam para nos resgatar.
É o que difere a celebridade do herói. A celebridade joga em causa própria; o herói joga por uma coletividade (salve, Casão).
A condição humana é a condição humana. Não se escapa da dor nem mesmo fazendo coco de pó de ouro.
O truque é encarar a tristeza, escutar o convite e se entregar à transformação.
Neymar é um homem que decidiu não se implicar na própria vida adulta. Quem cuida das coisas de gente grande é o pai. O negócio do Junior é jogar bola.
Infelizmente a experiência humana não é assim e a insistência em não amadurecer faz com que ele se distancie de todo um país.
Abandonar o Junior, se implicar na própria vida, ter consciência do que é o Brasil cujas cores ele defende, expandir os lugares de conhecimento, compreender por que um país como o nosso tem tanta fome sendo uma das maiores economias do mundo.
Ir buscar informações sobre como o machismo mata, sobre como a masculinidade aprisiona, sobre como um sistema que considera ele uma mercadoria acaba matando um pouco a pessoa que ele poderia ser.
Ser uma celebridade é uma porta de entrada imensa para essas trilhas. Normalmente as portas que nos são oferecidas são mais estreitas.
Oportunidade gera responsabilidade e o craque poderia encarar assim a vida adulta.
As chances de transformações estão dadas todos os dias. Bem na nossa frente. O bonde passa uma, duas, três, cem vezes. É um bonde insistente esse.
Trinta anos é bastante para o futebol, mas não para a longevidade humana. Tem tempo de sobra para transformações e para completar a jornada do herói.
Resta saber se ele topará a viagem, que não vem sem dor porque, pelo caminho, ficam aqueles que se recusam a vir junto.
E esses, especialmente no caso de Neymar, são muitos e estão perto demais.
UOL