De tanto excluir, o Qatar inclui
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Juca Kfouri
Por esses fenômenos de que o futebol tem sido capaz através dos tempos, eis que a primeira Copa do Mundo no chamado mundo árabe opera um pequeno milagre ao escancarar aquilo que os alienados insistem em recusar: dentro das quatro linhas, a bola é capaz de unir povos diferentes em torno de causas comuns.
Por mais que a Fifa dê as costas aos grandes problemas do planeta, insista em não misturar futebol e política, como nunca, a 22ª Copa do Mundo expõe na vitrine a revolta de alguns contra todas as formas de discriminação.
Foram os alemães a protestar contra a censura por terem sido impedidos de se manifestar a favor dos excluídos por orientação sexual, com time posado com as mãos nas bocas, os ingleses a se ajoelhar contra o racismo e os iranianos a se recusar a cantar o hino em ato pela inclusão das mulheres.
O gesto político alemão transcendeu a surpreendente derrota em campo para o Japão, com quem a Alemanha esteve unida na Segunda Guerra Mundial.
A atitude inglesa ressaltou o show de bola em seguida na goleada sobre os iranianos, que nem por isso deixaram de ser admirados pelo gesto antimisoginia.
Daí fazer sentido que a rara leitora e o raro leitor perguntem sobre o comportamento dos jogadores brasileiros diante disso tudo, eles que têm a responsabilidade de representar a única escola pentacampeã mundial.
A resposta, realista, deprime, pela quase absoluta ausência de qualquer postura cidadã. A otimista, ao menos no campo esportivo, abre brechas para a luz.
Do ponto de vista estritamente tático, a atuação da seleção brasileira, na estreia diante da Sérvia, serviu para mostrar o time com variações pelos lados e pelo meio que vão além das inegáveis qualidades técnicas, e discutíveis em relação à liderança, de Neymar.
Tanto que a lesão sofrida por ele no tornozelo não apavorou ninguém, tratada como acidente chato, indesejado, mas sem traumatizar como se faltassem opções. Porque não faltam.
Sempre lembrando que a Copa América foi conquistada sem ele, e da ausência de gols decisivos dele com a camisa amarela (com a da seleção, porque com as do Santos e do Barcelona fez e muitos), incrivelmente Neymar parece estar começando a fazer parte de uma época já passada, como se de fato fosse esta a sua última Copa e como se houvesse um cansaço com a carga tóxica que trouxe ao time nacional.
Até nisso o Qatar está sendo palco de inclusão, a de novos nomes, novos eventuais ídolos de uma seleção que sempre esteve longe de ser simpática.
Richarlison, o Pombo que voa de voleio, Vinicius Junior, Raphinha, entre outros, vão assumindo o papel de protagonistas, respaldados pela experiência de Casemiro, Marquinhos e por aí afora.
Porque até mesmo na hora em que o país passou a olhar para a seleção como se pudesse ser o ponto de união que misture todos com a camisa dela, Neymar dá um jeito de lembrar quem é, ao prometer camisa ao sociopata golpista que tem erisipela no cérebro e no coração.
Paradoxalmente, e muito provavelmente pela frieza do ambiente, o Qatar se transforma em laboratório para a reflexão sobre os diversos significados do esporte, do futebol especialmente, o mais popular de todos.
A cada rodada fica muito claro até que ponto o genial conservador Nelson Rodrigues tinha razão ao dizer que eram pobres aqueles que imaginavam o futebol limitado aos acontecimentos no gramado.
De fato, é muito mais do que isso.
FOLHA