A decisão de Moraes
de Maria Carlotto
Acabo de ler, na íntegra, a decisão do Ministro Alexandre de Moraes. É um massacre porque desmonta, ponto por ponto, a solicitação feita pela coligação de Bolsonaro (PL, mas tbm Republicanos e PP, que estão com o fundo eleitoral bloqueado até pagarem multa de R$22,9 mi).
1/Primeiro, é espantoso q a solicitação original se limitasse não só ao 2o turno (o que já é um absurdo em si), mas também às eleições presidenciais. Ou seja, de todos os votos depositados nas urnas, só os para presidente estariam comprometidos.
2/ Segundo Moraes, com razão, só isso já seria suficiente para considerar a ação inepta, caso não fosse adicionado ao pedido inicial, em 24horas, o questionamento de todo o processo, incluindo todo o primeiro turno e a eleição de governadores do segundo.
3/ A coligação, como sabemos, manteve seu pedido restrito às eleições presidenciais, o que fez Moraes rejeitar a ação por desvio de função, ou seja, ma-fé. Mas tem mais...
4/ Moraes esclarece tecnicamente e de modo muito contundente que a alegação central de que as urnas não podem ser identificadas uma a uma é totalmente falsa. A maior parte da decisão envolve a apresentação da explicação técnica do STI do TSE sobre cono se dá essa identificação.
5/ Assim, seja pelo oportunismo explícito da ação de só questionar uma parte da eleição, seja pelo absurdo de alegar uma falha que todo mundo sabe que não existe, Moraes considerou o pedido "esdrúxulo e ílicito", pq com a simples finalidade de tumultuar o processo...
6/... e incentivar protestos ilegais de cunho golpista, atentando contra o Estado Democrático de Direito, que, no Brasil, é crime. Por isso, mandou indeferir a ação, aplicar multa de R$22,9 mi e bloquear o fundo partidário de PL, PP e Republicanos. Certíssimo.
7/ Agora a análise: a decisão saiu às 20:17 da noite. Às 19:47, o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, dava, constrangido, uma entrevista à Jovem Pan. Alguns questionavam a seletividade da ação. Outros, mais amigos, perguntavam "apenas" sobre a reação do mundo político.
8/ De maneira surpreendente, Valdemar dá, de repente, uma resposta absolutamente sincera: "o mundo político quer me matar". Claro! Questionar a eleição é mexer com milhares de eleitos em todo país.
9/Eu disse mais cedo que o bolsonarismo estava dividido. Mais ainda agora. Não tinha solução fácil: se tudo desse certo para Bolsonaro, e ele vencesse a ação, toda a eleição seria anulada, inclusive de suas centenas de aliados. Se desse errado, Xandão ia pra cima. E foi.
10/ Muitos chamaram Valdemar de burro. Não foi burrice alguma. Ele reconhecia muito bem o vespeiro que adentrava. Mas o PL não tinha escolha, pq tem um acordo, por ora, incontornável com o bolsonarismo, que depende visceralmente de uma massa mobilizada e radicalizada...
11/...para seguir hegemonizando a direita brasileira como fez nos últimos 4 anos. Do contrário, as novas lideranças que emergiram do bolsonarismo, de Tarcísio a Zema, passando por Castro, Ratinho Jr. e outros, podem disputar esse espaço. É o fio da navalha da extrema-direita:
12/Bolsonaro projeta lideranças pq precisa ocupar espaço no Estado, mas tem que mantê-las sob seu controle estrito, para não perder, ele mesmo, a liderança geral do processo. Para fazer isso nesse momento (e pelos próximos 4 anos) precisa da sua massa militante mobilizada.
13/ Como fazer isso sem tensionar o sistema político até o limite da sua auto-implosão? Impossível. É por isso que o bolsonarismo é uma máquina de produzir e destruir lideranças. Quantas já surgiram e sumiram nesse processo?
14/ Não é por outro motivo que eles se movem por declarações públicas de fidelidade, q assumem a forma de falas sincronizadas. Bolsonaro precisa saber o tempo todo quem ainda está com ele, ainda mais pq, como bom político fisiológico, sabe q a tendência, agora, é dispersar geral.
15/ Isso tem tudo a ver com a negociação da PEC da transição e o debate sobre por quantos anos o Bolsa Família será excluído do Teto. Tudo indica que será por dois anos, ou seja, que o legislativo poderá voltar a cobrar sua fatura (nesse caso específico) no meio do mandato.
16/ Para as forças que querem uma transformação profunda do país, na direção oposta ao caos bolsonarista, resta a missão de fortalecer o executivo contra as barganhas do centrão e dos ultraliberais. Isso não se faz, no curto prazo, sem mobilização popular (nisso Bols* tá certo).
17/ Ou seja, o governo precisa colocar na mesa, logo, uma agenda de políticas e medidas ousadas para ativar sua base social na defesa da implementação desse programa. Se for xoxo, ninguém se mobiliza. Se for ousado, vão ativar a ladainha da responsabilidade fiscal.
18/ É por isso que a luta é em três frentes: contra o bolsonarismo radical; contra a direita fisiológica e contra os ultraliberais. É difícil? Sem dúvida. Mas como são adversários irmanados, golpe em um, é golpe em todos.
19/ Explico e termino:
• A direita fisiológica ganhou força p/ o legislativo com o controle do orçamento, sob o falso argumento de que estava trabalhando pela responsabilidade fiscal (da piada das pedaladas que levou ao Impeachment de Dilma à excrescência do Teto de Gastos).
• Isso só foi possível porque no ciclo 2014/2015/2016, os ultraliberais se empoderaram, graças ao tbm falso argumento de que a crise brasileira era fruto não das tensões mundiais pós 2008, mas do excesso de gastos do executivo e de uma política irresponsável pró-desenvolvimento.
• O resultado de tudo isso foi um aumento da crise social e econômica, que levou a um acirramento dos conflitos sociais e políticos, o combustível do bolsonarismo.
20/Por tudo isso, o centro da tática do governo Lula deve ser uma só: remar contra a corrente do caos, com mais saúde, mais educação, mais emprego, mais renda... O enigma de junho de 2013, que completará 10 anos, está aí. Sorte que o PT tem nova chance de decifrá-lo .Disso depende ...seu futuro: vai seguir sendo a peça chave da luta de classes brasileiras ou vai ser finalmente domesticado e reduzido a mais um peão no tabuleiro institucional de um sistema político carcomido?
A pedido, segue o link do texto que publiquei em 2013, na então Revista Fevereiro, chamado "Decifra-me ou devoro-te, o enigma de junho", em q argumento q ou o PT entendia aquele movimento ou seria devorado por ele. Desnecessário lembrar o que aconteceu.
http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=06&t=14
Qualquer coisa vindo da ESQUERDA não presta.